Canção da Partida
[…]
quem vai embarcar, que vai degredado,
as penas do amor não queria levar…
Marujos, erguei o cofre pesado,
lançai-o ao mar
E hei-de mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro uma carta…
- A última, de antes do teu noivado.
[…]
Camilo Pessanha
Ana de Castro e o Salvamento da Clepsydra
«Em suma, obra notável, pela amplitude da recolha e beleza do estilo,
claro, imaginoso, cingido à inventiva e ao falar do nosso povo, que reaparece
numa cadeia milenar de gerações, não perde no confronto com as Fiabe
Italiane (1956) de Italo Calvino, há pouco traduzidas entre nós.
Pena é que as nossas fiabe não se encontrem também disponíveis
numa edição correspondente à sua importância de clássico da literatura portuguesa
para as crianças e os jovens. Porque os contos de fadas, citando Italo Calvino,
não só são verdadeiros, não
constituem apenas uma explicação geral de vida, oriunda de
tempos remotos: exprimem sobretudo a substância unitária de tudo,
homens, animais, plantas e coisas, a infinita possibilidade de metamorfose do
que existe. E eis o que faz deles mágicos, fascinantes e ainda, por essa
via, proveitosas obras de arte, que encantam e ao mesmo tempo educam.
Depois de muitos anos de investigação, Fátima Ribeiro Medeiros,
mestre em Literatura Comparada pela Universidade Nova de Lisboa, acaba de publicar
Do
Fruto à Raiz - Uma Introdução às Histórias Maravilhosas da
Tradição Popular Portuguesa Recolhidas e Recontadas por Ana de Casto Osório,
que constitui o melhor estudo sobre a sua obra para a infância. Embora antes
dela outros autores tenham já tentado
aproximar a criança do conto tradicional, esse foi o grande trabalho literário da
sua vida; e fá-lo numa linguagem
muito cuidada mas simples, com algumas expressões que continuam na boca do povo, e um saber que se vai transmitindo de geração
em geração. As suas histórias tinham como objectivo, continua Fátima
Ribeiro de Medeiros, educar e alegrar as crianças.
Sobre as rescritas literárias de Ana de Castro Osório, a investigadora
usa a feliz metáfora da viagem:
- Viajar... um sonho de todos. A criança sonha com a viagem, viaja sonhando... Os contos infantis transportam-na para paragens e épocas longínquas, são pontos de passagem de um itinerário que só vai terminar quando estiver concluído, isto é, quando o leitor perceber que já é adulto. A leitura é ela própria uma viagem. Viajando de página em página, o leitor vai descobrindo o prazer do texto. Terminado o livro, terminou a viagem.
Ouçamos a própria Ana de Castro Osório sobre a sua arte de contar
para as crianças:
- A criança não gosta que a não tomem a sério e se lhe contem histórias com o ar de quem diz uma coisa sem importância, e tudo vem a seu tempo. Como detesta a imposição duma noção pedantesca da moral, que para o ser tem de ressaltar dos próprios elementos da vida e seu corolário por ela própria tirado dos factos expostos.
No entanto, há outro aspecto praticamente desconhecido da actividade da
escritora. Dedicou-se durante anos à recolha de rimas da primeira infância por ela coleccionadas e
comentadas, no Diário de Coimbra, onde colaborava
na coluna O Lugar das Mães.
Essas rimas da primeira infância,
por exemplo, Lagarto pintado / quem te pintou? - Foi uma velha/ que por aqui passou;
Era
uma vez / um gato maltez, tocava piano, falava fancês, educam o miúdo, comenta a
pedagoga, disciplinam a memória e
animam a criança num jogo alegre em que toma parte directa. A missão das
educadoras da primeira infância, que em toda a parte onde a pedagogia é um
estudo sério são apreciadas e pagas pelo justo valor, porque é quase um dom de
Deus....
Entre estas criações orais, destaca as rimas para decorar e parlendas,
para os meninos cantarem Papagaio loiro / do bico doirado /, leva-me
esta carta / ao meu namorado /, Ele não é frade, nem homem casado/, é rapaz
solteiro, lindo como um cravo. E também para fazer rir a criança,
que necessita de sentir muita alegria e boa disposição em todos que a rodeiam;
e não menos importantes, as rimas de
jogos e danças, porquanto na sua necessidade de movimento, de alegria e
de ritmo, que a criança reclama, têm papel muito importante os jogos, tanto os
de movimento como os de palavras e danças de roda, que tanto as animam colectivamente...»
In
António Osório, O Amor de Camilo Pessanha, edições ELO, obra apoiada pela
Fundação Oriente, colecção de Poesia e Ensaio, Linha de Água, 2005, ISBN
972-8753-43-8.
Cortesia da F. Oriente/Linha de Água/JDACT