«Oh sim! Desta vez não haveria lugar para os deleites amorosos, não
haveria lugar para Eros, para Afrodite, para o tormentoso Príapo, não haveria lugar para acender
as paixões carnais mas para animar os prazeres do espírito. Então, ao sinal do
dedo do anfitrião, o obeso Erixímaco foi o primeiro a romper o silêncio.
Deitado sobre uns almofadões, com a respiração agitada, algumas linhas de suor
na testa, abriu a túnica para areja, a sua barriga enorme e disse: - Senhores,
não vos chama a atenção que sendo o Amor uma divindade tão importante não hajam
hinos e cânticos em sua honra? A pergunta ficou a pairar no ar e ergueu-se um
ligeiro murmúrio entre os convidados. Era estranho, sim, era sem dúvida muito
estranho o facto de os trágicos e poetas terem cantado aos heróis, às guerras e
aos reis de todos os tempos, de terem celebrado cada uma das proezas imortais
dos deuses, com belos poemas e hinos imortais, e no entanto o Amor, essa
infinita e proverbial força que enredava homens e deuses, carecia de apologias
e louvores e elogios.
Que imperdoável esquecimento teria levado os poetas a condenar o Amor à
indiferença? - Por essa razão, meus amigos - continuou a dizer Erixímaco
- sugiro que esta noite se fale do Amor, dar-lhe a honra que na verdade merece
e que nunca teve; e para fazê-lo sugiro que cada um de nós pronuncie um
discurso, o mais sábio e belo que possam soltar os seus lábios acerca do Amor. -
Preferes celebrá-lo em vez de praticá-lo? - inquiriu Aristófanes com
alguma picardia. Erixímaco riu de boa vontade e respondeu: - Não sou
adivinho, querido amigo, e não posso saber o que nos reservam os deuses para o
final desta noite. Mas agora, se a tua impaciência nos permitir, insisto que
deixemos de lado os nossos desejos e discutamos acerca do Amor.
Aristófanes resmungou fingidamente entre risos, enquanto a proposta
de Erixímaco era aceite e celebrada com uma nova rodada de vinho que
circulou entre os convidados. Por se encontrar numa ponta da mesa, o jovem Fedro
foi escolhido para iniciar o giro, para esgrimir o primeiro discurso em torno
do Amor, o qual aceitou, erguendo o copo no ar e bebendo um generoso trago de
vinho. Com a manga da túnica enxugou os lábios, e depois secou o suor da testa
e disse: - Senhores, serei bastante breve. A meu ver, o Amor deve ser o mais
antigo dos deuses, quem sabe o primeiro, tão embrionário como o próprio cosmos
e feito da matéria do universo, pois segundo os mais venerados poetas da
antiguidade, o Amor não tem pais e foi criado nos tempos remotos em que reinava
o Caos.
Era o mais antigo dos deuses, dissera Fedro, e talvez também o mais benéfico
de todos, pois nada era melhor para um homem que possuir um amante virtuoso,
nada, nem as riquezas nem as honras nem os títulos, nada era tão pródigo como
esse indivíduo perante o qual todos os sentimentos humanos exigiam uma dimensão
sublime, pois, que maior tormento para o amado do que defraudar o seu amante?
Que maior vergonha do que ser surpreendido por este numa acção desonrosa?
- Sem essa vergonha, sem esse
pudor que se sente perante o ser amado - ressaltou Fedro - o homem é incapaz
de obras grandes e belas. Por isso, cavalheiros, mantenho que o Amor inspira os
maiores sacrifícios na criatura humana e, por conseguinte, é quem possui a
força necessária para lhe conferir as mais refinadas virtudes. Com brevidade,
com espantosa brevidade, o jovem explicara a sua noção do Amor, declarara os
seus objectivos e propósitos, e a sua intervenção arrancou uma salva de elogios
e aplausos. De repente, estalaram palmas entre os convidados, pesadamente
deitados nas almofadas, que celebraram a fervente apologia do rapaz erguendo
copos, rindo, assobiando, aplaudindo, bebendo até ao fundo e uma vez mais enchendo
os copos até transbordarem, enchendo-os com aquele vinho forte e espesso,
aquele vinho untuoso ao qual era necessário misturar água, pois bebendo-o em
estado puro turvava os sentidos e provocava as fúrias dos deuses.
A seguir, foi a vez de Pausânias. Era o convidado que se seguia
e, por isso, devia tomar a palavra depois de Fedro. Mas na verdade ninguém
dava nada por ele, pois comera e bebera tanto que parecia estar prestes a
rebentar. Os olhos orbitavam esgazeados e os lábios cobriram-se de um tom
arroxeado por causa do vinho. Contudo, uma vez atenuado o burburinho, acomodou a
sua obesa humanidade nos almofadões e com algum esforço disse: - Estou de
acordo contigo, meu querido Fedro, e brindo à subtileza do teu discurso.
Mas na minha opinião, nem toda a espécie de amor deve considerar-se bela e
virtuosa. - O que queres dizer? - perguntou Fedro intrigado. - Oh, é
muito simples. Como bem sabes, os nossos poetas ensinaram-nos que a deusa que
incarna o amor tem dois nomes: Afrodite
Pandemos e Afrodite Urânia.
A primeira representa o Amor vulgar, ignorante, ignóbil, o amor daqueles que
preferem o corpo em vez da alma. Inversamente, Afrodite Urania é o amor espiritual, o amor virtuoso que
anima os homens justos.
A sua voz soava como um gemido rouco e entrecortado. Devido aos
afrontamentos e ao calor, mas sobretudo à gulodice, Pausânias tinha de
respirar a cada palavra e dava a sensação de sufocar a qualquer momento. - Por
isso, meus amigos - acrescentou com enorme dificuldade - mantenho que apenas
essa espécie de amor, aquela que provém de Afrodite
Urânia e a que podemos chamar amor espiritual, é a verdadeiramente
bela e nobre, pois obriga tanto o amante como o amado a perseguir a virtude.
Enquanto o outro, o amor vulgar, que pertence a Afrodite Pandemos, eu... creio que... Pausânias interrompeu
o seu discurso um instante». In Miguel Betanzos, Sócrates, O Sábio
Imortal, Editorial Sudamericana, 2005, Ésquilo, Lisboa, 2006, ISBN
972-8605-93-5.
Cortesia de Ésquilo/JDACT