João Carlos
«São mais que horas, pensou ele, acordando; está já muito calor e hoje
é o dia; na vila haverá vozes, altas e lamentosas, dos animais que morrem; imolarei
também; ele é, o nosso cordeiro, como as palavras mandam; sem mancha,
macho, dum ano; agora vou matá-lo, dentro da madrugada; num golpe brusco, grave,
lhe abrirei a garganta, com a faca que gargantas abriu já antes desta, que a
sóis outros brilhou iguais ao de hoje, que outrora se cobriu do mesmo sangue;
depois caminharei para os canaviais que se vergam ao vento e com a faca tinta
do sangue cortarei um tubo na própria cana verde e nele aplicarei os lábios e
sentindo o aroma fresco e leve insuflarei a pele do carneiro e ela se encherá e
o esfolarei e o tomarei pela cauda e cor… tenros e de uma árvore o hei-de
pendurar pelos dedos e ele dará às folhas o último arrepio e lhe descerrarei o
ventre desde a base do queixo até ao escroto e amoravelmente meterei as mãos no
interior das vísceras e um calor antigo me subirá dos braços para a boca e a
boca saberá o cheiro do sangue e as tripas rolarão para a terra em que o sangue
começa a empapar e esfolado o borrego a cabeça é uma mancha roxa de mandíbulas
longas e feito este trabalho cortarei um pedaço da carne do lado e sobre as
brasas prepararei a carne com pães ázimos e silvestres alfaces festejaremos a
preparação da Páscoa e após termos comido lavaremos as mãos nas águas da
ribeira e juntos partiremos pela planície; será na Primavera; no princípio de tudo;
o sol cairá a pique sobre nossas cabeças quando enfim alcançarmos as portas da
cidade; são coisas de direito divino, coisas santas, os muros e portas da cidade».
In
Almeida Faria, A Paixão, 1965, Editorial Caminho, O Caminho da Palavra, Lisboa,
6ª edição, 1986.
Cortesia de Caminho/JDACT