«Na verdade, não é a solidão das estrelas, nem o barco anónimo, nem
objecto algum, que importam ao poeta de Tabacaria ou da Ode Marítima, mas a
ocasião que lhe oferecem de se descobrir, olhando-os, ser consciente da sua própria
finitude infinita, prisioneiro do labirinto do Tempo. Sempre a lírica
se alimentou da nossa temporalidade, das folhas mortas e dos amores mais mortos
do que elas.
Mas na lírica clássica e ainda na romântica, o eu, o poeta e quem o
lia, iam na barca do Tempo para alguma espécie de porto. Deus, ou alguém por
ele, esperavam-nos no fim para conferir sentido à viagem. A viagem de Pessoa, a nossa viagem em Pessoa é, desde o começo, a de alguém definitivamente
perdido. Nem o princípio nem o fim nos são conhecidos mais que nos símbolos que
de princípio e fim podemos conceber. Não estamos no Tempo, somos Tempo. Mas se o
Tempo é, nós não somos ou somos como
Pessoa se esforçou por imaginar que
seria, se fosse Caeiro, Reis ou Campos. Nenhum poeta da Modernidade
exprimiu como Pessoa esta absoluta
perdição do sentido do nosso destino enquanto mundo moderno e isto
bastaria para que o autor da Tabacaria se tivesse convertido não apenas
no mito que é para nós, mas numa das referências-chave
da Cultura contemporânea. De uma maneira ou de outra, o homem moderno
comparticipa desse sentimento de radical solidão e de absurdo que pouco a pouco
emergiu com o processo de isolamento e de inumanidade da civilização actual.
Era-lhe fácil reconhecer-se naquele que por nós todos
desfraldou ao conjunto fictício das estrelas
o esplendor nenhum da vida.
Ter dado uma figura espectacular ao sentimento absurdo da existência,
por mais fundado que ele seja na consciência moderna, não basta para explicar o
fascínio de Pessoa. Na realidade,
essa missão, menos caramente paga que
a de Antero ou do seu amigo Sá-Carneiro, seus precursores ou émulos
em visão trágica da vida, não
seria suficiente para o converter em mito. Como o não foi, nem o podia
ser, a invenção poética propriamente dita esse não sei quê clássico que
inspira o fascínio, em última análise, inexplicável, da autêntica poesia. A
esse título, o seu amigo Sá-Carneiro e, sobretudo, o seu tão admirado Camilo Pessanha representariam melhor o
puro
poeta, a assumpção misteriosa da palavra que comove pelo que nela há de
mais vulnerável e inexprimível. Todavia, nenhum deles se converteu (ainda?) em
presença avassaladora universal e quase anónima, nesse imenso delta onde tantos
de nós, desde há meio século, inscrevem as miragens mais raras ou decifram as
mensagens mais ocultas, como se
mergulhassem as mãos ao mesmo tempo no seu próprio espírito e no coração de uma
época.
É vão fingir que não sabemos que o mito-Pessoa, tanto em si como no seu
estatuto poético de amplitude hoje universal, repousa essencialmente na
encenação prodigiosa a que Pessoa
submeteu o seu radical sentimento de inexistência. Refiro-me à comédia
dos Heterónimos, que tanta tinta, e raramente boa, tem feito correr. O célebre drama
em gente, a invenção dos Pessoa-outros
destinados a cumprir pelo único que havia os sonhos de felicidade ou grandeza
imaginárias que só de os pensar o destruíam, é o último acto do longo processo
de dissolução do Eu inaugurado pelo
Romantismo. Dos duplos demoníacos de Hoffmann a
Dostoievski, dos pseudónimos de Kierkegaard às máscaras de Browning, até ao je
est un autre de Rimbaud, é larga a lista dos que se viveram sem a
salvadora crença que durante séculos nos inculcaram como feitos à imagem de
Deus e, como ele, unos e virtualmente imortais. Mas também, de portas adentro, Pessoa foi o termo de um claro processo
de heteronimização que tem as suas
raízes em Garrett e já quase uma
configuração pessoana em Eça de Queirós (Fradique), sem
esquecer, naturalmente, os dois Anteros que, em silêncio,
devoraram o verdadeiro». In Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa, Rei da
Nossa Baviera, Gradiva, 2008, ISBN 978-989-616-242-9.
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