quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

César de Frias. A Afronta a António Nobre. «Tem esta poesia a nota interessante, por nova, de denunciar o título dum livro “Alicerces”, que não consta do “Plano das obras de António Nobr”, publicado pelo visconde de Villa-Moura no seu notável livro “António Nobre (seu génio e sua obra)” o único trabalho de vulto inteligentemente urdido, que até a data alguém deu a lume…»

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(Continuação)

«É esta a contribuição que posso deixar ao coleccionador que amanhã surja a enfeixar as composições poéticas do ciclo inicial do Poeta, a sua primeira colheita de frutos de Beleza, de Graça e de Sonho, doirados e saborosos para quem os vê e lhes saboreia apenas o inebriante sumo da polpa, nem sequer adivinhando quanta dor dilacerou, triturou, rasgou primeiro as entranhas maternais do espírito criador que atirou para a luz solar, e em forma tão generosamente comunicativa, essa colheita magnífica. Pequena contribuição, sim. Mas, reconhecendo a sua modéstia, não a considero, todavia, importuna. Faço transcrição fiel, respeitando rúbricas e ortografia:

O Eclipse
(24 de Setembro de 1884)
N'aquella tarde eu contemplava, ancioso,
a lua das marés:
ia ver um phenomeno curioso,
pela primeira vez.

Desde as sete horas que eu me achava prompto,
pois vinha no jornal
que se daria, ás sete e meia em ponto,
o eclypse total.

Na praia, Miss! áquella hora havia
enorme sensação:
enthusiasmada, a gente discutia
com o óculo na mão.

E como, é certo, com a vista núa,
tam fraca e tam subtil,
tu não podias observar a lua,
Astrónomo gentil.

Um moço poeta, rouxinol das praias,
um oculo offereceu
a ti, meu doce Ptolomeu de saias,
Geometra do céu!

Assestaste-o, mas nada: uma imprevista
mancha aos teus olhos sáe,
pois que estava graduado pela vista
do teu velhinho pae.

Da praia, entanto, na deserta areia,
caia o luar a flux,
e nos céus fulgurava a lua cheia,
cheia de tanta luz.

Que tu, imaginando ver da aurora,
o lúcido arrebol,
disseste : ‘Estou capaz de abrir, agora,
O meu chapéu de sol… ‘

Única phrase que tombou, creança,
do róseo lábio teu,
porque depois, - que súbita mudança!
Tornou-se escuro o ceu…

E a lua, a pouco e pouco desmaiando,
sumia-se no ar,
como se um monstro a fosse devorando,
na sombra… devagar…

Á luz da lua succedeu a treva,
treva de horror sem fim,
côr dos teus olhos, deliciosa Eva!
meu pallido jasmim!

E ao ver-me só nas trevas, de repente,
clamei por ti, clamei…
E interrogando a multidão, a gente,
em vão! Não te encontrei!

Ah, bem dizem as lendas, os adágios,
e as bruxas do Sabbat,
que os eclypses da lua são presagios,
sinaes de coiza má!

Por isso o Mal com sua garra adunca
me separou de ti,
pois que tu nunca mais me viste, nunca!
E eu nunca mais te vi.

E, hoje, nas trevas sepulchraes e calmas,
eu vivo, por meu mal:
é que também se deu de nossas almas
o eclypse total!

Do livro, no prélo: ‘Alicerces’. António Nobre.

Tem esta poesia a nota interessante, por nova, de denunciar o título dum livro Alicerces, que não consta do Plano das obras de António Nobre, publicado pelo visconde de Villa-Moura no seu notável livro António Nobre (seu génio e sua obra) o único trabalho de vulto inteligentemente urdido, que até a data alguém deu a lume sobre a figura do Poeta, porque não se detêm nele a catalogar poesias, na ânsia comezinha e burocrática de lhe abrir assento de baptismo nesta ou naquela escola literária, mas sim, armada a sua observação com a melhor e a mais subtil das lupas, que o seu próprio temperamento de Artista lhe forneceu - na quase plena identidade de duas maneiras de ser psíquicas, a de si mesmo e a de Anto, desceu ao íntimo deste, a sondar-lhe fibra por fibra a alma enorme e ondeada de crises supra-terrenas e infernais. Com exactidão, obstinou-se em descobrir primeiro o génio do Poeta e em demonstrar depois que a sua obra ali embebe profundamente as raízes, seguindo assim processo contrário ao usado pelo vulgo dos tratadores de coisas literárias, com óculos críticos encavalitados no nariz, foscos de erudição, a atestar-lhes à légua- a miopia, isto é, a impotência para lobrigarem algo além do papel e dos caracteres nele exarados.
A poesia que segue não a datou o Poeta, nem sei ao certo a data do periódico que a inseriu, pois o fragmento que possuo abrange apenas os versos. Contudo, à margem, alguém escreveu a lápis 1888, que julgo indicar o ano em que saiu o impresso». In César de Frias, A Afronta a António Nobre, Livraria Central, Editora, Lisboa, PQ9261N6Z67, Library University of Toronto 15 de Setembro de 1967.

continua
Cortesia de Livraria Central Editores/JDACT