sábado, 19 de janeiro de 2013

Siglo de Oro. Relações Hispano-Portuguesas no século XVII. Isabel Almeida. «Nada mais seria preciso para indicar a voz da tentação, mas o escúpulo do autor leva-o a acrescentar ainda, severas e peremptórias, óbvias advertências, e entre elas uma que, além de servir de remate moral à peripécia…»

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Leituras de Camões no Tempo dos Filipes
«Por volta de 1589, um grupo de estudantes de Teologia da Universidade de Évora preencheu tempos de ócio convertendo espirituosamente ao de-vinho o Canto I d’Os Lusíadas. Também nessa época, Tristão Gomes Castro compôs na sua Argonáutica da Cavalaria uma aventura paródica em que o herói, de promissor nome Leomundo, percebe com susto e náusea que é üa fegura de mulher, a mais horrible feia que em toda a vida tinha visto, aquela cujo encantamento deve quebrar com um beijo. Não custa descobrir o modelo de tamanha fealdade e da reacção que suscita. O episódio do Adamastor pairava na imaginaçáo de Gomes Castro quando este madeirense, decidido a engendrar admiráveis surpresas, retomou e amplificou, na efígie da princesa adormecida, traços do monstro horrendo descrito por Camões, e na aflição do paladino o medo do Gama em face desse estranhíssimo colosso, começaram logo as carnes [de Leomundo] de se lhe arrepiar, e os cabelos da cabeça a se lhe rebatarem ao ver tão:
  • grandíssima estatura, a cor do rosto terrena e pálida, coberto de uas pintas muito negras e vermelhas que lhe faziam o rosto medonhosíssimo; os olhos mui piquenos e encovados, a boca negra, os dentes amarelos e lançados dela mais de quatro dedos, a barba escálida, os cabelos negros e muito retrocidos.
Por seu turno, sempre em idêntico período, Fernão Álvares do Oriente, pronto a apregoar, na Lusitânia Transformada, genuína devoção por Camões, elaborou aí como que um epílogo edificante do episódio da Ilha de Vénus. Sinal da mudança e do seu sentido morigerador, a ilha, cristianizada, volve-se da Rainha santa Helena, e as ninfas que nela deambulam já não praticam as artes que Citereia pagã ensina: penitentes e lacrimosas, carregam remorso pela pureza […] mal perdida e pelos desconcertos de amor passados com os primeiros argonautas do largo oceano. Nessa esteira seguiria Vasco Mousinho, que no Affonso Africano (1611) recriou criticamente o mesmo episódio d’Os Lusíadas, condenando com ênfase, através de hábeis efeitos dialógicos, a extraordinária liberdade pintada na ilha angélica.
Vasco Mousinho de Quevedo, permeável à influência da Gerusalemme Liberata, de Torquato Tasso, imita e refuta, emula e repreende: inverte ou altera a caracterização de personagens e situações; torna prazer sinónimo de pecado; e se evoca, com nitidez, palavras d’Os Lusíadas, recrimina a sua lição. Que no lema hedonista propalado por uma sereia caiba um verso do estupendo Canto IX

Gozemos o melhor da fermosura
que deu para se dar a Natureza,

Nada mais seria preciso para indicar a voz da tentação, mas o escúpulo do autor leva-o a acrescentar ainda, severas e peremptórias, óbvias advertências, e entre elas uma que, além de servir de remate moral à peripécia, compendia doutrina poética afìnada pelos ditames de Trento:

Nem de exemplos useis vituperados
em Lei de qualquer livre entendimento,
só para doce fábula inventados,
que a sensuais enleve o pensamento.

E se aqueles por fortes são julgados,
não teveram porém conhecimento,
que era de um forte a mais famosa empresa,
executar consigo a fortaleza.

Contrastantes, apropriaçóes iconoclastas ou reinvenções animadas de intuitos correctores, estes exemplos sugerem uma vária presença de Camões e evidenciam quão díspares seriam os caminhos da recepção da sua obra (maxime d’Os Lusíadas) no quadro da Monarquia Dual. Por outra via, empenhado em garantir a memória das cousas da pátria (Tão alheios vivemos nós de nós mesmos...) e em impugnar uma opção historiográfica que reputou escandalosa, Gaspar Estaço não hesitou em recorrer ao poema como testemunha salvítìca: acusando Duarte Nunes de Leão de elidir, na sua Crónica de D. Afonso Henriques, a façanha de Egas Moniz, Estaço bradava contra um eclipse capaz de vingar:
  • se não fora o poeta Luís de Camões, que com seu bom júzo e curiosa eleição recolheu de nossas histórias as pedras preciosas de mais estima, pera com elas honrar a obra dos seus Lusíadas.
O que se pretende aqui não é ilustrar todo esse vasto fenómeno, nem sequer dar conta do amplo espectro de questões que despertou ou implicou. Procurar-se-á, sim, restringir o escopo do trabalho, fazendo sobressair processos de valorização simbólica da epopeia como o que Gaspar Estaço adoptou; processos que, indissociáveis de uma atitude política, ora de resistência ou reserva à ordem instaurada, ora de sintonia com o regime filipino, envolvem, para lá de imediatas iniciativas individuais, malhas de interesses não raro apoiados em fortes tradições». In Isabel Almeida, Siglo de Oro, Relações Hispano-Portuguesas no século XVII, Fundação Calouste Gulbenkian, Colóquio Letras, 2011.

Cortesia da FCGulbenkian/JDACT