quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Vésperas de Sombra. Nuno Júdice. «Elas sofriam a prova em silêncio, mesmo as que estavam noivas e que sabiam que esse ‘jus primae noctis’ fazia parte do contrato que tinham estabelecido ao entrar ao serviço da casa…»


jdact

«Da parte dele, era outra a insatisfação, uma angústia de João a fazê-lo procurar amantes, não só a dona da Retrosaria, mas outras que viviam na cidade, e outras ainda no meio das criadas e das mulheres do campo, dando-lhe uma reputação de ogre que o facto de ter uma gruta debaixo de casa, a meio do famoso túnel, ainda tornava mais viva. Nunca lhe passou pela cabeça o casamento, não porque não tivesse tido quem o pretendesse, mas porque a vida de boémia que levara durante os anos em que essa solução poderia ter representado uma escolha de vida estável acabaram por lhe impor o celibato, o que não quer dizer que não sentisse a necessidade de afirmar uma virilidade que afastasse o espectro da velhice prematura que afecta muitos dos que enveredam por esse caminho, gastos pelos trabalhos e pelos ressentimentos trazidos pela idade.
E era debaixo de terra, nessa gruta que, na imaginação do povo, talvez tivesse estalactites e estalagmites, que o viam consumar o amor, como se precisasse de regressar ao útero da grande deusa para recuperar a vitalidade masculina! O que era verdade, dentro da lenda, é que havia na casa uma cave onde se tinham construído umas tulhas que, na altura das matanças do porco, se enchiam de sal, e era aí que se guardavam as carnes para o inverno. Com a humidade, o sal ganhava brilhos húmidos que acentuavam o lado feérico desse subterrâneo mal iluminado; e quem assomava à porta, tinha a impressão de ter entrado num ventre que o condenava ao exílio do mundo, onde o cheiro a salmoura se misturava com o do sangue dos animais, que secara no chão e, apesar das limpezas, deixara manchas que ganhavam com o tempo uma consistência de crosta. No meio da grande sala, de tecto baixo, havia uma mesa de madeira muito usada, onde eram abertos os porcos que tinham sido mortos no quintal; e era aí, diziam, que o Senhor consumava as suas proezas eróticas com as raparigas que entravam ao serviço da casa, e que ele faria pela prova da desfloração, como se elas fossem como essas virgens da Antiguidade, condenadas ao sacrifício ritual no fim do verão para que a morte invernal, que o outono anunciava, pudesse ser exorcizada. E estas histórias, nesse tempo em que não havia televisão e em que só nas casas ricas havia telefonia, serviam para que se passassem mais depressa as noites intermináveis passadas em torno do fogão da cozinha, para aproveitar o calor que vinha do borralho onde se cozinhava o feijão e as sardinhas do jantar.
Elas sofriam a prova em silêncio, mesmo as que estavam noivas e que sabiam que esse jus primae noctis fazia parte do contrato que tinham estabelecido ao entrar ao serviço da casa; e de nada servia terem de suportar o olhar duro das criadas mais velhas, adivinhando na perda das rosáceas e no princípio de olheiras o fim da inocência e compensando a sua frustração interior com os gritos que censuravam a mínima das suas distracções durante as intermináveis limpezas que tinham como resultado que não houvesse nada da casa que não brilhasse, o que iria acabar quando o número de empregadas se foi reduzindo, e só as mais antigas aceitaram continuar, mas desleixadas até acabarem por fazer com que o Senhor se cansasse delas e as dispensasse, o que representou o triunfo do pó sobre o brilho, mesmo nas pratas que deixaram de ser ciclicamente esfregadas para reflectirem como espelhos as madeiras preciosas dos móveis que, depois, começaram a quebrar e a deixar sair os interiores miseráveis dos seus estofos.

Foi quando a chuva começou a entrar pelos buracos das telhas que o Senhor teve um rebate de consciência e mandou fazer algumas obras, refugiando-se numa casa de
campo enquanto os operários pintaram algumas salas, mudaram a instalação eléctrica, transformaram as canalizações. Essa mudança fez com que ele se desse conta de que existia uma outra vida para além da aldeia, com os problemas da sobrevivência, o trabalho a começar ainda com a noite, no horário de inverno, as doenças que era preciso vencer sem médico, porque o único que havia estava na cidade, as agonias dos velhos, amarrados à cama, com o padre a descer da aldeia, à pressa, para dar a extrema-unção. Reagiu com alguma estranheza, a princípio, ao aperceber-se de que aquilo correspondia a um sofrimento real, a que ele poderia nalguns casos dar resposta: pegar no automóvel e levar o doente ao hospital, ou distribuir algum dinheiro para resolver situações mais difíceis». In Nuno Júdice, Vésperas de Sombra, Quetzal Editores, Lisboa 1998, ISBN 972-564-359-3.

Cortesia de Quetzal Editores/JDACT