quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O Músico Cego. Vladimir Korolenko. Leituras. «Não tardou a reconhecer a mãe pelo andar, pelo roçagar do vestido, só a ele acessíveis e imperceptíveis para todos os outros. Por mais pessoas que estivessem na sala, fosse de que modo fosse que elas se movimentassem, dirigia-se infalivelmente para onde a mãe estava sentada»

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«A presença em casa do menino cego deu novo rumo, paulatina e imperceptivelmente, ao pensamento activo do aleijado combatente. Como antes, continuava sentado horas a fio, soltando baforadas do cachimbo, mas nos seus olhos, em vez da profunda e estagnada dor, luzia agora uma expressão de pensador atento e interessado. Então, quanto mais o tio Maksim se aprofundava nas suas elucubrações, mais vezes se lhe carregava o espesso sobrolho, mais irritadas eram as baforadas do seu cachimbo. Uma vez, finalmente, resolveu intrometer-se: - Este rapaz - disse, soltando sucessivos anéis de fumo - será ainda mais infeliz do que eu. Era melhor não ter nascido. A jovem mãe baixou a cabeça e uma lágrima caiu sobre o bordado que estava a fazer. - Lembrares-me isso é uma crueldade – disse baixinho, - uma crueldade inútil... - Não estou a dizer mais do que a verdade - respondeu Maksim. - Não tenho uma perna e um braço, mas tenho olhos. O rapaz não tem olhos e, com o tempo, não terá braços nem pernas nem vontade... - Mas porquê? - Tenta compreender-me, Anna - disse Maksim com mais brandura. - Não te diria coisas cruéis desnecessariamente.
O miúdo tem um sistema nervoso subtil. Por enquanto, tem hipótese de desenvolver todas as outras capacidades de modo a compensar, pelo menos em parte, a sua cegueira. Mas para isso precisa de exercício, ora o exercício começa quando surge a necessidade. Agora, o estúpido proteccionismo que o priva da necessidade de fazer qualquer esforço priva-o também de qualquer hipótese de ter uma vida mais completa.
A mãe era inteligente e conseguiu ultrapassar os impulsos espontâneos que a faziam precipitar-se em socorro da criança ao mais pequeno grito ou lamento. Alguns meses depois desta conversa, o miúdo já gatinhava livre e rapidamente por todas as salas, apurando o ouvido a qualquer som e apalpando, com uma vivacidade insólita noutras crianças, todos os objectos que lhe caíam nas mãos.

Não tardou a reconhecer a mãe pelo andar, pelo roçagar do vestido, por outros indícios, só a ele acessíveis e imperceptíveis para todos os outros: por mais pessoas que estivessem na sala, fosse de que modo fosse que elas se movimentassem, dirigia-se infalivelmente para onde a mãe estava sentada. Quando ela lhe pegava ao colo inesperadamente, o miúdo percebia de imediato que era a mãe. Ora, quando o faziam outras pessoas, começava a apalpar depressa com as mãozinhas a cara da pessoa que pegara nele e, também, reconhecia num instante a ama-seca, o tio Maksim, o pai. Porém, quando lhe acontecia ir parar ao colo de um desconhecido, os movimentos das suas mãozinhas tornavam-se mais lentos: o miúdo passava-as com cuidado e atenção pelo rosto desconhecido, e os traços da sua carita exprimiam uma tensa concentração; parecia espreitar com as pontas dos dedos.
Pela sua natureza, era um rapaz muito activo e dinâmico, mas os meses corriam e a cegueira ia marcando cada vez mais o seu temperamento, que começava a definir-se. A vivacidade dos movimentos desaparecia a pouco e pouco; começou a meter-se nos cantinhos escondidos e, horas seguidas, ficava quieto, com a cara parada, como que a escutar alguma coisa. Quando na sala era silêncio e a mudança de sons variados não distraía a sua atenção, a criança parecia reflectir em qualquer coisa de maneira nada infantil, com uma expressão de perplexidade e espanto no seu rosto bonito e sério.
O tio Maksim acertou na sua previsão: o subtil e rico sistema nervoso do menino desenvolvia com êxito a compensação e, graças à sensibilidade do tacto e da audição, como que restabelecia, até certo ponto, a plenitude das percepções. Toda a gente se admirava com a incrível subtileza do seu tacto. Por vezes parecia, até, que não lhe era alheia a sensação das cores; quando calhava pegar em retalhos de cores vivas, os dedos finos do rapaz demoravam mais a apalpá-los, e uma expressão espantosamente atenta percorria a sua cara. No entanto, com a passagem do tempo, tornava-se cada vez mais claro que o desenvolvimento da sensibilidade dizia respeito, sobretudo, à audição.
Não tardou a conhecer na perfeição todas as salas pelos respectivos sons: diferenciava o andar dos familiares, o rangido da cadeira com o tio aleijado sentado nela, a fricção seca e rítmica da linha nas mãos da mãe, o tiquetaque monótono do relógio de parede». In Vladimir Korolenko, O Músico Cego, Arbor Litterae, 2010, ISBN 978-989-8292-30-8.

In Memoriam dos amigos D. M. do Nascimento e Teodoro.
Tenho saudades vossas, dos diálogos nas termas e na praia. “Sr D… deixe-me um espaço na garagem por causa do meu Volvo castanho…” Bem-hajam.

Cortesia de Arbor Litterae/JDACT