(Continuação)
Drama de Sangue em Coimbra
Coimbra … de 137…
«Mas também é certo que quem seu cão quer matar, raiva lhe põe nome;
e assim é que o Infante João determinou em sua vontade cedo privá-la da vida.
Partiu o infante João, firme neste propósito, e dirigiu-se a Alcanhões, onde foi
magnificamente recebido pelo conde de Barcelos e outros fidalgos. Jantou com a
formosa D. Isabel, filha do conde Álvaro Pres Castro, depois do que houve
dança, vinho e frutas. O conde João Afonso ofereceu ao Infante uma cota mui
vistosa, um bulhão bem guarnecido e uma faca muito formosa que lhe tinham
trazido de Inglaterra. À tarde seguiram para o Paço, acompanhados de donas,
donzelas, cavaleiros e escudeiros; houve larga conversa íntima com o Infante
João, o quel foi depois dormir à poisada do conde, para na manhã seguinte
continuar a viagem.
Dirigiu-se a Tomar, onde o Mestre, filho de D. Maria, o convidou a
jantar; porém, o Infante não aceitou o convite. Se Lopo Dias já suspeitava das
intenções do padrasto, ainda mais receoso ficou depois de tão insólita recusa e
despachou a toda a pressa recado para sua mãe a fim de que se acautelasse. Isto
foi-me confirmado aqui pelas damas de sua companhia dela, que também me
disseram que, já antes, D. Maria recebera avisos de gente da casa de El-Rei a
preveni-la da desgraça que a esperava. A pobre senhora, todavia, redarguia
sempre, com grande nobreza, que todas
as coisas eram em poder de Deus e que aquilo que a Ele aprouvesse, isso seria.
E confiada se deixava ficar, sem modificar em coisa alguma o seu viver.
Entretanto o Infante ia galopando a caminho de Coimbra, acompanhado de
Diogo Afonso, Garcia Afonso do Sobrado e outros fidalgos de sua casa. Pernoitou
no Espinhal, passou em Foz de Arouce, e, de Almalaguez, desceu aos
olivais à beira do Mondego. Junto à ponte convocou a sua gente e disse-lhe
pouco mais ou menos isto:
- - Consta-se que D. Maria, irmã da rainha, anda a tornar público que é minha mulher, do que tem escrituras e fidalgos por testemunhas. Disto lhe cumpria guardar segredo, por sua honra e minha. E por isso vou onde ela está, para lhe falar e praticar o que cumpre a minha honra e estado.
Todos responderam que estavam prontos a acompanhá-lo, e então recomeçaram
a marcha a caminho de Coimbra. Passaram a grande ponte, ganharam a Couraça
e chegaram a Sub-Ripas, quando começava a romper a manhã. Por má sorte,
uma lavadeira destrancou as portas por onde logo entraram os cavaleiros, de
tropel. Subiram a uma sala onde algumas mulheres dormiam. Preguntou o Infante
se não havia outra entrada para se chegar aos aposentos de D. Maria; como lhe
respondessem que não e as portas estivessem mui bem trancadas, ordenou que as
arrombassem. Cada um fez o que mais pode, de modo que, dentro em pouco, as
portas estavam quebradas.
Acordou subitamente D. Maria e, ao ver a sua câmara assim invadida por
aquela gente, alçou-se do leito tão espantada e temerosa que mal se podia ter
de pé. Não teve tempo para pôr sobre si vestido ou manto, nem quem lho desse,
porque as damas que a acompanhavam não se podiam mover de terror. Cobriu-se
então com uma colcha branca e encostou-se à parede, como quem procura defesa.
Ao ver, porém, entrar o Infante, recobrou ânimo e disse:
- -Senhor, que vinda é esta tão desacostumada?
Lançou-lhe o Infante João em rosto o seu procedimento de ter divulgado
o casamento secreto que os unia, de modo que dele chegou conhecimento ao rei, à
rainha e a toda a Corte, o que seria motivo de o mandarem matar ou prender para
sempre. E acrescentou que, se era sua mulher, merecia a morte, porque o atraiçoava,
dormindo com outro homem. Pretendeu D. Maria justificar-se, rogou ao Infante' que
a ouvisse; mas ele retorquiu-lhe apenas:
- - Não vim eu aqui para estar convosco em palavras! - E arrancou-lhe a colcha, de modo que todos os presentes desviaram a vista e não puderam ter-se que não chorassem pela sorte que ali mesmo a esperava.
Então o Infante agarrou-a e, brandindo o punhal que o conde de Barcelos
lhe dera, cravou-lho entre o ombro e os peitos, cerca do coração. Ela só pode dizer:
- Mãe de Deus!, socorrei-me e havei
mercê desta minha alma. Deu-lhe novamente o Infante com o bulhão no ventre;
ela invocou Jesus, filho da Virgem!,
botou uma golfada de sangue, e caiu sem vida.
Quando Gonçalo Mendes Vasconcelos me contou este último passo da
tragédia, com a voz entrecortada de soluços, não pode prosseguir. As donas que
o ouviam, e que confirmavam o que ele ia narrando, romperam em saudoso pranto,
que era de cortar o coração. Para dar por terminada a minha missão, faltava-me
apenas preguntar que rumo levara depois o Infante. - Saltou logo para o seu cavalo e partiu a toda a brida em direcção a
S. Paio, onde, segundo me consta, não puderam chegar com ele mais de seis. Depois,
junta a companha, encaminhou-se para a Beira, onde anda a montear, à espera de
ser perdoado e de que El-Rei seu irmão lhe dê a filha em casamento.
Fecho esta carta cismando em como o desejo de reinar é coisa que não
receia de cometer obras contra razão e direito...» In Amador Patrício, Grandes
Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins Barata, prefácio de Caetano
Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva, 1938.
continua
Cortesia de Minerva/JDACT