domingo, 27 de janeiro de 2013

Grandes Reportagens de Outros Tempos. Amador Patrício. «Quando Gonçalo Mendes Vasconcelos me contou este último passo da tragédia, com a voz entrecortada de soluços, não pode prosseguir. Fecho esta carta cismando em como o desejo de reinar é coisa que não receia de cometer obras contra razão e direito...»


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(Continuação)

Drama de Sangue em Coimbra
Coimbra … de 137…
«Mas também é certo que quem seu cão quer matar, raiva lhe põe nome; e assim é que o Infante João determinou em sua vontade cedo privá-la da vida. Partiu o infante João, firme neste propósito, e dirigiu-se a Alcanhões, onde foi magnificamente recebido pelo conde de Barcelos e outros fidalgos. Jantou com a formosa D. Isabel, filha do conde Álvaro Pres Castro, depois do que houve dança, vinho e frutas. O conde João Afonso ofereceu ao Infante uma cota mui vistosa, um bulhão bem guarnecido e uma faca muito formosa que lhe tinham trazido de Inglaterra. À tarde seguiram para o Paço, acompanhados de donas, donzelas, cavaleiros e escudeiros; houve larga conversa íntima com o Infante João, o quel foi depois dormir à poisada do conde, para na manhã seguinte continuar a viagem.
Dirigiu-se a Tomar, onde o Mestre, filho de D. Maria, o convidou a jantar; porém, o Infante não aceitou o convite. Se Lopo Dias já suspeitava das intenções do padrasto, ainda mais receoso ficou depois de tão insólita recusa e despachou a toda a pressa recado para sua mãe a fim de que se acautelasse. Isto foi-me confirmado aqui pelas damas de sua companhia dela, que também me disseram que, já antes, D. Maria recebera avisos de gente da casa de El-Rei a preveni-la da desgraça que a esperava. A pobre senhora, todavia, redarguia sempre, com grande nobreza, que todas as coisas eram em poder de Deus e que aquilo que a Ele aprouvesse, isso seria. E confiada se deixava ficar, sem modificar em coisa alguma o seu viver.
Entretanto o Infante ia galopando a caminho de Coimbra, acompanhado de Diogo Afonso, Garcia Afonso do Sobrado e outros fidalgos de sua casa. Pernoitou no Espinhal, passou em Foz de Arouce, e, de Almalaguez, desceu aos olivais à beira do Mondego. Junto à ponte convocou a sua gente e disse-lhe pouco mais ou menos isto:
  •  - Consta-se que D. Maria, irmã da rainha, anda a tornar público que é minha mulher, do que tem escrituras e fidalgos por testemunhas. Disto lhe cumpria guardar segredo, por sua honra e minha. E por isso vou onde ela está, para lhe falar e praticar o que cumpre a minha honra e estado.
Todos responderam que estavam prontos a acompanhá-lo, e então recomeçaram a marcha a caminho de Coimbra. Passaram a grande ponte, ganharam a Couraça e chegaram a Sub-Ripas, quando começava a romper a manhã. Por má sorte, uma lavadeira destrancou as portas por onde logo entraram os cavaleiros, de tropel. Subiram a uma sala onde algumas mulheres dormiam. Preguntou o Infante se não havia outra entrada para se chegar aos aposentos de D. Maria; como lhe respondessem que não e as portas estivessem mui bem trancadas, ordenou que as arrombassem. Cada um fez o que mais pode, de modo que, dentro em pouco, as portas estavam quebradas.
Acordou subitamente D. Maria e, ao ver a sua câmara assim invadida por aquela gente, alçou-se do leito tão espantada e temerosa que mal se podia ter de pé. Não teve tempo para pôr sobre si vestido ou manto, nem quem lho desse, porque as damas que a acompanhavam não se podiam mover de terror. Cobriu-se então com uma colcha branca e encostou-se à parede, como quem procura defesa. Ao ver, porém, entrar o Infante, recobrou ânimo e disse:
  •  -Senhor, que vinda é esta tão desacostumada?
Lançou-lhe o Infante João em rosto o seu procedimento de ter divulgado o casamento secreto que os unia, de modo que dele chegou conhecimento ao rei, à rainha e a toda a Corte, o que seria motivo de o mandarem matar ou prender para sempre. E acrescentou que, se era sua mulher, merecia a morte, porque o atraiçoava, dormindo com outro homem. Pretendeu D. Maria justificar-se, rogou ao Infante' que a ouvisse; mas ele retorquiu-lhe apenas:
  •  - Não vim eu aqui para estar convosco em palavras! - E arrancou-lhe a colcha, de modo que todos os presentes desviaram a vista e não puderam ter-se que não chorassem pela sorte que ali mesmo a esperava.
Então o Infante agarrou-a e, brandindo o punhal que o conde de Barcelos lhe dera, cravou-lho entre o ombro e os peitos, cerca do coração. Ela só pode dizer: - Mãe de Deus!, socorrei-me e havei mercê desta minha alma. Deu-lhe novamente o Infante com o bulhão no ventre; ela invocou Jesus, filho da Virgem!, botou uma golfada de sangue, e caiu sem vida.
Quando Gonçalo Mendes Vasconcelos me contou este último passo da tragédia, com a voz entrecortada de soluços, não pode prosseguir. As donas que o ouviam, e que confirmavam o que ele ia narrando, romperam em saudoso pranto, que era de cortar o coração. Para dar por terminada a minha missão, faltava-me apenas preguntar que rumo levara depois o Infante. - Saltou logo para o seu cavalo e partiu a toda a brida em direcção a S. Paio, onde, segundo me consta, não puderam chegar com ele mais de seis. Depois, junta a companha, encaminhou-se para a Beira, onde anda a montear, à espera de ser perdoado e de que El-Rei seu irmão lhe dê a filha em casamento.
Fecho esta carta cismando em como o desejo de reinar é coisa que não receia de cometer obras contra razão e direito...» In Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva, 1938.

continua
Cortesia de Minerva/JDACT