terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Goa Antiga e Moderna. Frederico Diniz D’Ayalla. «De uma das dobras do pano, habilmente fisgada à cintura e que deixa ver a coxa, tiram de quando em quando grão assado e caroços de tamarindo… Lestas e tagarelas andam apressadas, jogando descompostamente os quadris e rastejando umas sandálias feitas de ola, que mal lhes cobre a planta do pé»

Velha Goa
jdact

Estão pelos telhados e janelas velhos e moços, donas e donzelas. In Camões

Goa
«Nas tardes de Maio, a brisa da tarde rumoreja por entre os lestos ramos da palmeira um ciciar muito parecido com o bater das asas de uma ave; o vento do mar alto sacode os troncos das mangueiras e jaqueiras num ruído flácido e sussurrante, próprio do bosque; a areia volteia em espirais pelo Campal, e o mar ronca, imitando o despenhar de uma cascata, por entre os bancos de Gaspar-Dias. A fortaleza de Reis Magos, na margem direita, parece irromper das águas, deixando ver, ao passo que subimos o rio, as trincheiras que gradualmente sobem, e a bela fachada da igreja, olhando para o interior. Aproamos à cidade da igreja, olhando para o interior. Aproamos à cidade de Nova Goa.
Vêem-se no outeiro de Pangim as escadarias e a igreja da Conceição, e de outro lado as umbrosas e verdejantes margens de Verém e Betim ostentam toda a opulência tropical. Nas pequenas enseadas aglomeram-se as canoas carregadas de frutas e flores, que vão depois fornecer o mercado da capital. Pangim no sopé do outeiro, em alguns pontos coberto de arvoredo e subindo a encosta, deixa ver os seus prédios meio escondidos, como uns brancos lençóis suspensos ao vento. Pelo nascente, destacam-se os casarios de Ribandar, a igreja da Piedade, Chorão, e mais além, num fundo dourado pelo sol e cortado pelo rio, as torres da Velha Goa, quais flocos de neve confundidos no horizonte com as altas serranias das Novas Conquistas.
Entre Pangim e Betim atravessam o rio as tonas carregadas de gente. Marinheiros de corpo nu, cabelo atado no alto da cabeça e luzidio de azeite, descem o rio cantando uns, fumando outros. Como a cidade é quase morta, ouvem-se perfeitamente o bater do hélice dos barões a vapor e as ordens do patrão, à inglesa, stopper! De um e outro lado, os passageiros entram e saem as lanchas, que fazem carreira entre Pangim e Verém. Uns de trajos pagãos, turbante branco ou barrete bordado a galão, pálidos, amarelentos e desconfiados, desaparecem pressurosos, sacudindo a trança ao vento e batendo os pés no chão para sacudir a poeira das sandálias; outros, meneando muito a cabeça, contando pelos dedos, bocejam com incrível tédio. Conversam num tom áspero e cantante; vão apressados, sempre em grupos falando nos seus negócios, oferecendo uns aos outros a areca e o bebel ou passando de mão a mão o canudo, que sorvem a largos tragos. Os interessados das comunidades e os demandistas que vêm à capital tratar de seus negócios, calção curto até ao joelho, chinelos sem peúgas e um chapéu alto de dimensões colossais, sobraçam rolos de papel e seguem o seu caminho em agitada conversa. O sério burguês, proprietário ou advogado, caminha sempre seguido de uma turba de clientes. Mais polido, de porte amaneirado e cheio de si, o indígena educado à portuguesa dá-se ares entre os seus amigos, tendo sempre o cuidado de se referir amiudadamente ao seu trato com pessoas gradas da província, juiz, delegado, o que não deixa de causar sensação e provocar comentários entre os seus admiradores. Raparigas de belos olhos pretos, cabelo basto e negro, seguem a passo curto para o bazar, e vão pelas ruas de Pangim vender os seus géneros. De uma das dobras do pano, habilmente fisgada à cintura e que deixa ver a coxa, tiram de quando em quando grão assado e caroços de tamarindo, com que entretêm o apetite. Lestas e tagarelas como são, andam apressadas, jogando descompostamente os quadris e rastejando umas sandálias feitas de ola, que mal lhes cobre a planta do pé.
De vários pontos da capital, logo pela manhã cedo, grupos de criados dirigem-se para o novo mercado pela rua do aterro, dando-se ao derriço, beliscando e jogando ditos obscenos. Daqui e ali se ouvem garridas risotas e o lânguido mandó ao som da picareta, com que o pedreiro vai aperfeiçoando o material para uma casa nova ou para as obras do aterro. As moças que os ajudam em conduzir a cal e as pedras, sobem os andaimes espicaçadas por uns ditos amorosos e outras vezes rogando pregas contra os mais atrevidos. Este passatempo é, característico da sensualidade indiana, e a não serem estas raparigas, os pedreiros e carpinteiros, risonhos e dengosos, tanto a mulher como o homem na Índia, ainda que extremamente sensuais, são no geral tristes, principalmente a mulher que chega a ser lúgubre no seu trajo de preceito, o ôll.
O farangui, como lá se chama, julgando-se ainda o fidalgo de outras eras, entra em cena mais tarde, segundo a pragmática. Levanta-se sempre tarde, lê assiduamente de manhã e à noite os romances de Camilo, Dumas, Paul Kock, e se não é precisamente um Pico de Mirandola ou um fervoroso adepto de Voltaire, não deixa de saborear Hugo e Guerra Junqueiro com certa predilecção.
Não é revolucionário, por índole, mas amantético, gostando de Soares de Passos e João de Lemos, e, sobretudo, da história de Carlos Magno e os Doze Pares de França. Um espadachim em miniatura e fanfarrão como o espanhol; não namora com os dandys de cá, mas julga-se com direito de ser amado, e por força tem uma noiva, a mais bonita e elevada na sociedade! Se é militar, não se espreguiça tento à espera que e criada lhe vai levar o café à cama, e, como o tempo urge, não tarda a fazer-se sentir pelas ruas o rastejar estrepitoso da espada do garboso alferes. Todo ele é um primor. O calçado tem o brilho dos seus olhos, os botões fazem-lhe como estrelas, e a banda, bem se vê, cingiu-lha a mão mimosa da esposa ou irmã». In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna, Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN 978-989-719-001-8.

Murgão

A saudade do Álvaro José (onde quer que estejas!) 
Cortesia de Ésquilo/JDACT