«Vasco da Gama acordou, parece até que foi o primeiro, tratou de limpar
ramelas e de se refrescar, chamou os mais preguiçosos, deu-lhes que fazer;
alindassem eles os barcos que vinha aí gente graúda. O tal importante não sabia
nada acerca dos portugueses, nem do que eram nem em que acreditavam, se eram
por Alá se por Deus, coisas que nessa época eram muito importantes e
necessárias, não sabia ainda se vinham a toa ou com rumo certo. Tinha até uma
desconfiança:
- pela cor da pele,
- modos e roupas,
- se calhar eram Turcos,
- e isso nem era mau, era mais ou menos,
- gente da mesma fé entende-se sempre e vai daí talvez.
Ou talvez não. E se não fossem? Chegou e pôs-se
logo com inquéritos e bisbilhotices, o Vasco da Gama a dizer: eh lá! Este é um metediço!
Mas o Vasco da Gama só disse com os seus botões, em voz alta meteu os
pés pelas mãos, contou tudo e mais o que não devia contar, e ainda por cima
usou um intérprete, já que o outro falava uma língua de trapos e rodilhas.
Contou tudo, mostrou-lhe as armas que tinha, as ideias em que acreditava.
Quem lá vem traz só a pele
não esconde o amor que tem,
neste mundo pobre dele
que sem ter mal não está bem.
O tal importante olhou para as armas com ar de apalermado. Safa, que aqueles portugueses não faziam
a coisa por menos:
- armaduras, espingardas de aço,
- pelouras,
- aljavas,
- bombardas,
- chuços.
Os tipos, pensou o importantaço, são assim a modos que ingénuos,
mas
têm um arsenal capaz de partir a loiça toda! Vasco da Gama confiava.
Achava aqueles mouros de ar tranquilo e afável, porque não confiar neles?
Estava enganado. O tal importante sorria e por dentro enchia-se de raivas.
Estes portugueses eram perigosos. Tinham armas poderosas. Aquilo metia medo! Ainda
por cima, este Vasco e todo sorrisinhos e falinhas mornas... deve estar a querer
pregar-nos alguma!
O importante disfarçou, que isto e mais aquilo e talvez mais um bocado
e assim assim, sabe-se lá. O que ele não queria era levantar suspeitas. Queria
atrair os portugueses para uma armadilha e dar-lhes no lombo. Afinal, maometanos
e cristãos. Há muitos anos que andavam a combater-se.
E voltam os deuses a entrar na história. Baco torna, por seu turno, a fazer passar-se por mouro. Dá uma ajuda ao tal
poderoso, aconselha-o a matar os portugueses. E quando estes chegaram a
praia, para ir buscar os mantimentos prometidos, e o piloto que os guiaria,
foram recebidos por uma chuva de setas. Sorte, destreza, reviravoltas de
narração:
- ficaram feridos,
- maltratados,
- correram,
- uma estafadeira pegada, mas nenhum morreu.
Reuniram-se e defenderam-se e mostraram o que valiam: puseram a
artilharia aos gritos, o que para os mouros foi um susto dos maiores. Alguns
atiraram-se à água mesmo sem saber nadar, e outros fugiram que nunca mais ninguém
os viu». In Alexandre Honrado, Eu curto… Eu gosto dos Lusíadas, Negócio de Ócio,
Lisboa, 2002, ISBN 972-98888-0-9.
Cortesia de Negócio de Ócio/JDACT