terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O Paraíso Triste. O Quotidiano em Lisboa durante a II Guerra Mundial. Maria João Martins. «Toda esta gente parou aqui, onde começam as ondas do mar. Nesse tempo, de Lisboa, saíam os últimos navios que os alemães deixaram passar. Estes barcos são velhos, incómodos, mas cheios: as pessoas pagam tudo só para não ficarem na Europa»


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Quotidianos excepcionais
Os refugiados
«Diante das tépidas águas que banham a praia do Estoril, sob as palmeiras que ornamentam o jardim do Casino, a ameaça alemã parecia longínqua como uma praga de ficção científica. Mas a memória das perseguições sofridas não deixava descansar esses banhistas de ocasião. A noite deixara de ser o tempo onde, com lume no coração, se admiram tesouros. Nela, parecia já não haver lugar senão para a morte e para os parentes dela, que são a miséria e o medo. Que gente era esta que esperava ordem de partida para a América, sentada nas esplanadas do Estoril? As vezes, senhoras tão bonitas como Ingrid Bergman e homens tão bem parecidos como Paul Henreid. Outras vezes, nem tanto. A maioria eram judeus fugindo a um lugar cativo num campo de concentração. Alguns deles trouxeram consigo parte dos bens, aliás, indispensáveis para a entrada na América que, dos refugiados, exigia a posse comprovada de um mínimo de quatrocentos dólares. Outros, perderam-nos, na fuga, e pensavam num meio de arranjar o indispensável para prosseguir viagem.
Os portugueses orgulhavam-se desse cosmopolitismo por força das circunstâncias. No Verão que se seguiu à ocupação da França, 1940, já os aviadores, diplomatas, estrelas de cinema e até pessoas de sangue real, entre outros comuns mortais à procura de um lugar literalmente ao sol, buscavam as areias do Estoril. Em Lisboa, as refugiadas vindas da Europa Central introduziam novas modas e sacudiam uma Lisboa mentalmente parada no século XIX. No romance O Cavalo Espantado, Alves Redol evoca essa atmosfera, bruscamente renovada:
  • O relógio do Carmo insinuava as horas. Foi então, aí por 1939, que do outro lado da praça, e a pedido dos estrangeiros sem sol para os aquecer na vida, se puseram cadeiras no Passeio (...) E as estrangeiras sentaram-se por ali, a ler e a conversar, matando o tempo de ansiedade naquele trampolim que tanto poderia levá-las mais depressa ao lar abandonadas, como atirá-las para um exílio em terras americanas (...) Ficou ali uma montra de pernas e de coxas para todas as gulas lisboetas, às escâncaras, sem pudores recalcados.
Os transeuntes profissionais do Chiado, ainda nessa época o melhor miradouro do que de público e privado havia na cidade, enlevavam-se facilmente com tais palminhos de cara branca e com essas cabeleiras louras ou ruivas como as das estrelas de cinema. Eram russas, alemãs, holandesas, francesas, polacas, inglesas e espanholas, tal como os contemporâneos de Eça, os lisboetas continuavam a perder a cabeça e a bolsa por nuestras hermanas e eles imaginavam-nas cheias de passado, rosas de fogo e volúpia, como lhes chamava Guedes Amorim numa crónica publicada no magazine O Século Ilustrado. Um dos diplomatas refugiados em Portugal no ano de 1941, o jugoslavo Miloch Tsrnhanski, conta na sua autobiografia, Embaixadas, a agitação vivida no Estoril nessa época em que os alemães ainda dominavam a Europa.
  • Toda esta gente parou aqui, onde começam as ondas do mar. Nesse tempo, de Lisboa, saíam os últimos navios que os alemães deixaram passar. Estes barcos são velhos, incómodos, mas cheios: as pessoas pagam tudo só para não ficarem na Europa.
Mas Miloch Tsrnhanski recorda ainda outro género de refugiadas: as jovens, nomeadamente inglesas, que ficaram sem casa e desconheciam o paradeiro dos familiares. Foram testemunhas de atrocidades de que, em circunstâncias normais, nem suspeitavam. A Legação Inglesa concedia-lhes uma ajuda semanal, mas tal quantia raramente lhes permitia comprar o fato de banho, indispensável nas praias da 1inha.
Que atractivos tinha o Estoril para oferecer a esses turistas forçados? Aparentemente, muitos hotéis e outros tantos cafés, com nomes tão sugestivos como Miramar, Grande Hotel, d'Angleterre ou Clipper Café.
Na prática, estes lugares ditos de evasão ocultavam armadilhas ou, na melhor das hipóteses, incomodidades várias. Como se não bastasse a possibilidade não muito remota de os alemães invadirem Portugal, os espiões de ambas as partes beligerantes estavam atentos. Por outro lado, os hotéis não eram instituições filantrópicas, capazes de pôr as mesmas condições de conforto, à disposição de todos os clientes, independentemente das respectivas contas bancárias. Miloch Tsrnhanski e esposa, instalados em Portugal quando estavam a braços com uma grave crise financeira, tudo quanto conseguiram arranjar foi um quarto, no Hotel d'Angleterre, onde ambos os canos de água jorravam água quente como um vulcão. Todavia, no mesmo estabelecimento pernoitavam também a filha e o genro de um ex-Presidente da República espanhola». In Maria João Martins, O Paraíso Triste, O Quotidiano em Lisboa durante a II Guerra Mundial, Vega, Colecção Memória de Lisboa, 1994, ISBN 972-699-474-8.

Cortesia de Vega/JDACT