«Qualquer coisa como Caraño ou Cariño, não é muito claro. São os portos
autorizados para essa esquadra... O Valido olhou para o volumoso processo,
sopesou-o. - Papéis e mais papéis. Guarde-os Vossa Mercê, mas não os perca de
vista. Posso precisar deles. O chanceler-mor pegou no cartapácio, fez uma reverência,
tornou a reverenciar ao chegar à porta, e saiu: a sua partida coincidiu com a
chegada do padre Germán de Villaescusa, um capuchinho: tinha entrado pela porta
dos confidentes. Fez uma profunda vénia. O Valido levantou-se e beijou-lhe a
mão. - Já está ao corrente, padre? - Todo o palácio o sabe. E o Rei acaba de
regressar. Não disse uma única palavra, meteu-se nos seus aposentos, sentou-se
diante de uma janela, e parece que contempla o céu.
- Sintomas de arrependimento? -
Como se pode interpretar o olhar de um homem para o horizonte? - De mil
maneiras, metade boas, metade más. - Esse homem é o Rei. - Que acaba de passar
a noite nos braços do pecado. - É, o que parece, padre, e isso é que é o pior. -
Vossa Excelência tem alguma outra notícia? - Que o alcoviteiro foi um tal conde
da Peña Andrada, que desconheço. - Eu, em compensação, ouvi o seu nome... Sim,
deixe-me pensar. É um galego, não é verdade? - Assim parece. - A presença do Apóstolo
naquelas terras não parece ter favorecido a causa do Senhor. Sei de muito boa
fonte que mais de noventa por cento dos galegos, clérigos incluídos, se
condenam.
- Não são muitos réprobos, padre? - Pode haver algum erro, mas escasso.
Digamos oitenta e nove. - Mesmo assim... - As mulheres, as que não são bruxas,
são p…. . Os relatórios do Santo Ofício (maldito) garantem-no.
- Deveria haver maneira de o Rei, sem se desfazer dessas terras, se
libertar de semelhante gente. - Pois não me parece difícil... O Valido imaginou
o distante Reino da Galiza ardendo pelos quatro costados, num gigantesco
auto-de-fé. O remédio do padre Villaescusa era sempre o mesmo.
Ficaram um momento em silêncio, fitando-se. - O pior, padre, é que se
anuncia a chegada de uma frota das Índias e, por outro lado, nos Países Baixos
parece iminente uma grande batalha. O frade persignou-se. - Se os ingleses nos
roubarem o ouro e os holandeses a vitória, haverá que acatar a vontade de Deus.
- Isso, padre, é evidente. Mas a vontade de Deus é inflexível. O frade pôs-se
de pé. - Vou-me pôr a rezar, para ver se o Senhor me inspira o remédio. É muito
cedo. Daqui até à missa solene, ainda faltam umas duas horas. O que se pode
obter de Deus, nesse tempo!
- Pois lembre-se também de mim,
padre; desde há três dias que a minha esposa está de novo com as regras... - É,
um duro fardo das mulheres, do qual se deduz a sua condição inferior em relação
aos homens. O Valido levantou-se, aproximou-se do frade e pôs-lhe as mãos nos
ombros. - Mas eu preciso de um herdeiro, padre, mais do que da própria vida,
que não pode esgotar-se em mim próprio. E Vossa Reverência conhece as minhas
súplicas e sacrifícios. O Senhor não parece ouvir-nos, nem à minha esposa nem a
mim. - Será porque as suas súplicas não chegam ao céu. - Teremos que gritar,
padre? Gritar publicamente, vestir-nos de penitentes, passar sem comer e sem
beber? - Não posso responder-vos, senhor. Vou rezar. Alguma coisa me há-de
inspirar o Altíssimo. Fez nova reverência, um pouco mais curta, e saiu pela porta
dos confidentes». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei
Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho,
1992, ISBN 972-21-0708-9.
Cortesia da Caminho/JDACT