quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Raiz de Orvalho. Mia Couto. «Porque a minha mão infatigável procura o interior e o avesso da aparência, porque o tempo em que vivo morre de ser ontem e é urgente inventar outra maneira de navegar outro rumo outro pulsar, para dar esperança aos portos que aguardam pensativos»

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Regresso
Voltar
a percorrer o inverso dos caminhos,
reencontrar a palavra sem endereço
e contra o peito insuficiente,
oferecer a lágrima que não nos defende.

Recolher as marcas da minha lonjura
os sinais passageiros da loucura
e adormecer pela derradeira vez
nos lençóis em que anoitecemos.

Reencontrar secretamente
o fugaz encanto,
o perfeito momento
em que a carne tocou a fonte
e o sangue
fora de mim,
procurou o seu coração primeiro.
Bilene, Janeiro 1981

Confidência
Diz o meu nome,
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios,
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça,
para que se desatem os teus cabelos,
para que aconteça.

Porque eu cresço para ti,
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno.

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor,
e dentro de ti
me recolho ferido,
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci.

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência,
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar,
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos.

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho,
como se fosse intruso,
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome.
Agosto 1979

Poemas de Mia Couto, in ‘Raiz de Orvalho e Outros Poemas
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