terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Elogio da Loucura. Erasmo. «Um testemunho de peso é o provérbio vulgar que diz “ser a loucura a única coisa que detêm a fugacíssima juventude e que afasta a incómoda senectude”. Nunca sofreriam de incómodos da senectude se não acontecesse, como é frequente, infectarem-se ao contágio dos sapientes»

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Fala a loucura
«Pelo que se pode calcular em quanto superam a própria infância, idade muito feliz e agradável mas que não tem o prazer da tagarelice. Acrescei que os velhos adoram as crianças e que estas se afeiçoam a eles, porque:
  • os deuses comprazem-se em unir os semelhantes.
Mais ou menos rugas, maior ou menor número de anos, tais são as diferenças entre uns e outros. Mas o cabelo branco, a boca desdentada, o corpo débil, o gosto pelo leite, a balbúcie, a garrulice, a inépcia, o olvido, a irreflexão aproximam-nos. Quanto mais os homens acedem à senilidade, tanto mais ganham em semelhança com a puerícia; e, por fim, emigram como crianças, sem o tédio da vida, sem a consciência da morte.
Agora compare quem quiser os meus benefícios com as metamorfoses dos restantes deuses. Já não rememoro sequer as metamorfoses que fazem quando impelidos pela ira, mas só aquelas que promovem para com os seus protegidos: costumam transformá-los ora em árvote, ora em ave, ora, em cigarra e até em serpente: como se assim transformá-los fosse mais do que matá-los. Eu restituo ao próprio homem a época mais feliz da sua vida. Se os mortais decidissem desiludir-se do amor pela Sofia, e preferissem o comércio com Folia, nenhum deles chegaria a velho, todos gozariam a felicidade da juventude perpétua. Não vedes esses rostos tétricos que os estudos filosóficos ou que as dificuldades dos negócios fazem envelhecer antes de tempo, porque a cogitação assídua acaba por azedar p espírito e por exaurir a seiva da vida? Pelo contrário, os meus estultos são pingues e nítidos, têm a cútis bem cuidada, uns verdadeiros porcos de Acarnânia, como se costuma dizer. Nunca sofreriam de incómodos da senectude se não acontecesse, como é frequente, infectarem-se ao contágio dos sapientes. Sofre assim a vida dos homens, porque eles não são perfeitos. Um testemunho de peso é o provérbio vulgar que diz ser a loucura a única coisa que detêm a fugacíssima juventude e que afasta a incómoda senectude.
E como é digno de louvor o povo de Brabante. Enquanto para os outros homens a idade costuma afirmar a prudência, estes quanto mais acedem à senectude tanto mais afirmam a loucura. Não há gente como esta, para levar a vida cada vez mais festivamente, para cada vez menos sentir a tristeza do envelhecimento. Quanto a lugar, costume e modo de vida confinem com eles os meus holandeses. Chamo-lhes meus, porque me prestam tão zeloso culto que lhes valeu um cognome vulgar. E esse apoio em vez de vergonha, lhes dá honra. Ide agora, mortais louquíssimos pedir a Medeia, a Circe, a Vénus, a Aurora e a não sei que outra fonte, que vos restituam a juventude!
Só eu posso conceder tal favor! Possuo o filtro mirífico com que a filha de Memma prolongou a juventude de Titão. Eu sou a Vénus que devolveu a Faonte o atractivo que arrebatou Safo. São minhas as ervas, meus os feitiços, minhas as fontes que não só evocam a mocidade passada, mas também, o que melhor é, a conservam perpetuamente. Se todos vós subscreveis a sentença seguinte, que nada há melhor do que a mocidade nem pior do que a senilidade, vede então quanto me deveis, a mim que retenho tanto de bom como excluo tanto de mau». In Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura, tradução de Álvaro Ribeiro, colecção Filosofia e Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1987.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT