«Poema épico escrito por
Camões com o labor análogo ao das
abelhas, e ligado à nacionalidade de um povo, o povo português, como
nenhum outro, Os Lusíadas são uma obra cujo estudo merece uma
atenção especial. Nunca será de mais salientar que se trata de uma obra de
grande complexidade e de dimensão cultural muito abrangente e profunda, que
reflecte um entrecruzar de vários mundos,
que é preciso compreender e decifrar. Assim é, desde logo, por Os Lusíadas serem uma
obra do Renascimento, uma obra global, pelo grande empenhamento que
neles depôs o seu autor, e pela valia estético-literária que possuem, mas ainda
pelo assunto que desenvolvem, pelas realidades que focalizam, pelos valores
políticos e morais que apresentam, pelos conteúdos epocais e intemporais que
veiculam, pela condição, que é a sua, de obra prima da literatura mundial.
E assim é, igualmente,
pelos muitos factores, de forte densidade ideológico-cultural, presentes em Os Lusíadas, tais como:
- a pluralidade das fontes literárias e culturais;
- a religião, a mitologia, a ciência, a política, o conteúdo histórico-geográfico da antiguidade e da modernidade, com debate de opiniões sobre múltiplos assuntos;
- as noções cosmográficas, etnográficas, de fauna e flora;
- os códigos epocais, literários e culturais;
- as particularidades de linguagem, vocabulário, organização do discurso…
Tudo isto tem a ver com
o facto de Os Lusíadas seguirem
a tradição da epopeia clássica, que sempre foi aproveitada, pela escola, com
finalidades pedagógicas e educativas, versando e estudando, variadas áreas do
saber, leitura, gramática, retórica, história, filosofia, geografia…, focalizando,
nomeadamente, personagens, acção, mitologia, cultura, ideias, valores…
Assim aconteceu entre os
gregos. Homero foi denominado educador
da Grécia. Os seus poemas, sobretudo a Ilíada e a Odisseia,
eram ditos em ocasiões festivas, por aedos
e rapsodos, os poetas que declamavam poemas ao
som da cítara, nas festas, celebrando os feitos dos heróis ou acontecimentos
importantes, e aproveitados na escola, em lugar central, exercendo grande
influência no modelo de educação.
Da cultura grega, a
influência de Homero passou à
cultura romana, tocando, primeiro, a elite aristocrática, dela transitando para
o domínio popular.
Depois, a Eneida,
epopeia do povo romano, foi igualmente aproveitada para fins pedagógicos e
educativos. Através das epopeias, Grécia e Roma exerceram uma posição revolucionadora
e solidária na história da educação humana, tornando-se, por essa via,
a antiguidade clássica tesouro inesgotável de saber e de cultura.
Pela divulgação que delas foi feita pelos romanos, as epopeias clássicas
chegaram às culturas ocidentais, e assim se prolongaram, com influências nos
domínios da língua, dos discursos, da religião, dos usos e costumes…, para as epopeias
posteriores, que as tomaram como referência.
Assim acontece com Os Lusíadas, precisando, por
isso, de ser considerados com atenção especial. Ensinar Os
Lusíadas não é tarefa fácil. Os Lusíadas são, sobretudo, uma obra de que se
aprende a gostar e que se aprende a ler. E estes dois aspectos aparecem
interligados. Gosta-se porque se compreende, e compreende-se porque se aprendeu
a ler. Nesta aprendizagem, integra-se, naturalmente, o desenvolvimento do
espírito crítico do leitor. E quanto a isto, é preciso chamar a atenção para o
facto de Os Lusíadas, como
obra clássica que são, poderem pressionar os leitores, sobretudo
os mais jovens, interferindo com a liberdade de construírem a sua leitura. Por
esse facto, mesmo insistindo-se, junto dos alunos, sobre que, apesar da sua
condição, Os Lusíadas são
uma obra que, não só admite, mas também suscita leituras, reflexões, tomadas de
posição, concordâncias e discordâncias… como qualquer outra, será de
compreender, e até de esperar, por parte deles, alguma retracção.
Depois, há dificuldade
em seleccionar bibliografia para o seu estudo, pela multiplicidade de autores
que se aplicaram sobre ela. Mesmo assim, muitas vezes a escola acaba por aceder
àquilo que tem mais disponível, por exemplo: resumos, colectâneas de colagens
com referências duvidosas e em enésima mão, manuais de ensino
apressadamente elaborados, e até com erros…, seguindo o caminho mais fácil,
muitas vezes longe de ser o melhor.
As bibliotecas
escolares, apesar do grande avanço operado nos últimos anos, continuam a não
estar capazmente apetrechadas, e não existem hábitos de se protagonizarem nem promoverem,
através da biblioteca, nas suas dimensões essenciais, biblioteconómica e
educativa, projectos de dinamização envolvendo obras literárias. Além disso,
dadas a multiplicidade e a complexidade da obra, é preciso fazer opções. Por mais
que se reconheça que a abordagem de Os
Lusíadas, deve ser diversificada e completa, não há tempo nem meios
para que o seu estudo seja realizado numa dimensão integral. Importa, por isso,
seleccionar o mais importante,
desenvolvendo competências e inculcando saberes que possibilitem outras, novas
e mais amplas, leituras, no futuro. Importaria que Os Lusíadas fossem uma das obras de leitura
recorrente, para os portugueses. Mas isso só se conseguirá quando as gerações
mais jovens tiverem acesso a uma boa preparação escolar de base, neste domínio».
In
Lino Moreira da Silva, Tópicos para uma
Abordagem Renovada de Os Lusíadas,
na aula, I Encontro Leituras em Português, Universidade do Minho, IEP, 2005.
Cortesia da Universidade do Minho/JDACT