segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A Paixão. Tetralogia Lusitana. Almeida Faria. «O máximo uma hora para casa, pousar as compras no poial de mármore, o peixe, as couves, o lacão, os alhos, ferver o leite e entrementes fazer torradas para os meninos, no tempo das laranjas espremer aí uma dúzia delas, os meninos são cinco…»

jdact

Piedade
«De madrugada ainda levantar-se, descer para a cozinha e enregar o trabalho reacendendo lume no fogão, lavar a louça que ficou da véspera, com sobejos de comida, em monte sobre a pia, durante o inverno a água gela, corta os ossos da gente, faz doer às vezes até pelo braço acima, deve ser reumático, mesmo ao cotovelo, e só depois sair para o quintal em que os pardais já cantam sobre o carrapateiro, filhar da vassoura e, com ela, varrer a capoeira e aos bichos dar farelos e mais reção avondo, de manhã as capoeiras têm sempre um certo cheiro azedo como alguns quartos de homem e também ao pintassilgo mudar a água para beber, pôr a tina do banho, dar-lhe ou alpista ou uma folha de alface ou a tão ambas, retirar o papel que, ao fundo da gaiola, se enche de cagadelas dia a dia e de casca de alpista, voltar depois ao quarto, lá em cima, a fim de pentear-se, pintar-se se ele a espera, pôr arrelicas e se aparelhar do casaco comprido, cinzento e desbotado de dez anos, meter a carteira na algibeira, descer de novo a escada em caracol para a cozinha, botar a água ao lume já pegado, pegar na alcofa dentre cestos e cabanejos, bilhas, tarefas, potes grandes de azeite ou azeitona e alguidares com todos os tamanhos, vermelhos e vidrados, largos para a matança e para o sangue, tachos de cobre, fulvos, em pé contra a parede de fumo nunca escura, branca, branca, caiada e mais caiada, em seguida descer por vez segunda os degraus do quintal, abrir o pesado portão fechado à chave, soltar os cães esquentados da noite para a rua, ir pela rua velha e árida à derêtura caminho da praça do mercado, comprar o que de véspera a senhora, a cuja obediência ela está, com letra grossa na lista de papel pardo assentara: carne de vaca ou vitela para bifes, hortaliça, pescados o que houver, etc., o costume, comprar sem muito ou sequer nada refilar, porque não vale a pena, não lhe pagam palavras, trabalho tão-somente, meter dois dedos de paleio com esta e com aquela, mais apaniguadas, com o conversado se o tem pela altura, nos dois últimos anos teve vários, a frescura já foge, ou com outro algum pretendente que por acaso apareça a cheirá-la, cheira-lhe a carne forte, mamas fortes, voltar ao fim de meia hora, o máximo uma hora para casa, pousar as compras no poial de mármore, o peixe, as couves, o lacão, os alhos, ferver o leite e entrementes fazer torradas para os meninos, no tempo das laranjas espremer aí uma dúzia delas, os meninos são cinco, preparar o caldo de maizena e vianda de leite, e os flocos de aveia, migar o pão prás sopas dos mais novos, esfregar o chão de pedra da cozinha e a mesa da cozinha, antes de pôr a toalha aos quadrados azuis para o pequeno-almoço, tirar o grão e o bacalhau que ficaram de molho desde a véspera ou ir ao quintal uma vez mais, no qual agora o gato, estático, silencioso e muito atento, caça infrutiferamente borboletas, ir de faca em punho e debaixo do braço o alguidar, é preciso sempre ter cuidado, não bater com ele no corrimão da escada, assim partiu dois que teve de pagar e uma porrada de massa lhe custaram e este está rachado, Talvez da água quente, com dois gatos grandes ali ao pé da borda, voltar com a galinha morta ou ferida de morte dentro do alguidar, a cabeça entre as asas como um sono, deitar-lhe água a ferver, tirar do lume o leite, o caldo de maizena, guardar a rouça que quase já secou, servir o dejejum aos meninos que gritam, depois de no quintal terem jogado um bocado ao botão, ao berlinde, à pancada, ao pião, conforme a época do ano, ficando com feridas negras ou feridas de sangue nos joelhos, ou a tão depois de serralha ao grilo cantarrista terem dado, se em tempo deles é, que quer tanto dizer como na primavera, e quando finalmente eles se vão, meter mais louça suja na pia da lavagem, depenar a galinha, pô-la ao lume porque às vezes é dura, sentar-se enfim no banco de pedra ao canto da janela de guilhotina aberta, mastigando uma-bucha de pão com queijo ou chouriço ou farinheira ou banha, o que houver, e entre os dedos húmidos um púcaro de lata com café de soja e com isto tudo hão-de ser dez horas e o estômago a dar-lhe horas desde as seis, por isso anda largando o osso nesta bruta labuta todo o santo dia que inda vai no começo mas que um dia, espera, talvez quando casar, ou talvez não, há-de acabar; batem as sete; tem os olhos cerrados e, cansadamente, reconstitui os gestos gastos a fazer; o dia que se segue é-lhe memória negra; assim o percorreu, envolta em trevas, por semanas santas que duraram séculos e agora sabe apenas que no quarto existe alguma pouca claridade; entra pela fresta da janela o frio do sol nascendo; não há sombra de dúvida, isto tem de acabar; horas de pôr-se apé; horas de início, horas de começar; são mais que horas». In Almeida Faria, A Paixão, 1965, Editorial Caminho, O Caminho da Palavra, Lisboa, 6ª edição, 1986.

Cortesia de Caminho/JDACT