quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Fernando Pessoa e os Mundos Esotéricos. José Manuel Anes. «… assim o alchimico, ao operar, materialmente quanto aos processos, mas transcendentemente quanto às operações, sobre a matéria, visa transformar o que a matéria symboliza, e a dominar o que a matéria symboliza para fins que não são materiais»

Bodas alquímicas, Donum Dei, séc. XVII
Cortesia de wikipedia

«Ora, este último parágrafo, que refere o contacto com os símbolos magicamente carregados e, com os mitos, quer sejam verdadeiros, ou verdade, vai estabelecer a ponte para a interpretação, por parte de pessoa, da alquimia laboratorial, que ele conhecia, pelo menos, através do Tratado português do século XVIII, Ennoea, ou a Aplicação do Entendimento sobre a Pedra Filosofal, de Anselmo Caetano Munhoz e Castelo Branco, livro que pertencia à sua biblioteca. Yvette Centeno, que patrocinou e apresentou a reedição do Ennoea na Gulbenkian, em 1987, ano em que sai, em Mafra, uma outra reedição, com prefácio de Manuel Gandra, é responsável pela publicação (entre muitas outras valiosas peças) de um interessantíssimo fragmento do espólio pessoano, justificativo da alquimia laboratorial:

os elementos que compõem a matéria têm um outro sentido; existem não só como matéria, mas também como símbolo. Há, por exemplo um ferro-matéria; há porém, e ao mesmo tempo, e o mesmo ferro, um ferro-símbolo. Cada elemento simboliza determinada linha de força supermaterial e pode, portanto, ser realizada sobre ele uma operação ou acção, que o atinja e o altere, não só no que elemento, mas também no que símbolo (...) assim o alchimico, ao operar, materialmente quanto aos processos, mas transcendentemente quanto às operações, sobre a matéria, visa transformar o que a matéria symboliza, e a dominar o que a matéria symboliza para fins que não são materiais.

René Alleau, no seu livro Aspects de L'Alchimie Traditionelle (1953), afirmará mais tarde,  em notável acordo com a tese pessoana, que a alquimia, ao constatar que tudo o que é observável é simbólico, afirma que tudo o que é simbólico é observável.
Alguns textos de Pessoa parecem estar de acordo com a afirmação dos rosa-crucianos de que a Alquimia espiritual e a alquimia material são respectivamente, o Ergon e o Parergon. Por exemplo, aquele excerto que tem a ver com as proximidades divina e satânica das duas alquimias:
  • a alquimiu material é satânica, o espiritual é divina.
Neste contexto, cite-se Álvaro de Campos que, na Ode Marítima, irá evocar o

Deus dum culto ao contrário,
um Deus monstruoso e satânico,
um Deus dum panteísmo de sangue.
Álvaro de Campos - Livro de versos.

Mas ao mesmo tempo Pessoa escreve que:
  • Tudo é um. O satânico é tamsómente a materialização do divino.
Esta perspectiva global e integradora dos diversos planos da realidade, bem característica da alquimia, está bem clara no poema que Dalila Pereira da Costa cita no seu livro pioneiro:

Sursum Corda. Erguei as almas!
Toda a matéria é espírito,
porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos,
dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
e funde em Noite e Mistério o Universo excessivo!



Como o está no texto anteriormente citado e que atribui como verdadeira criação da Pedra Filosofal, o fazer dentro de si mesmo a união dos dois princípios, o material e o espiritual, o masculino e o feminino, o racional e o emocional, etc. Esta unidade da Realidade e também, portanto, das técnicas adequadas para se progredir nela, é referida em textos do Poeta/Mago e Alquimista, que estabelecem uma ponte entre este parágrafo (Alquimia) e o seguinte (Magia)». In José Manuel Anes, Fernando Pessoa e os Mundos Esotéricos, Ésquilo 2008, ISBN 978-989-8092-27-4.