sexta-feira, 13 de maio de 2016

A Aia da Rainha. Barbara Kyle. «Terá morrido?, perguntou a rapariga a si mesma. O homem ergueu as pálpebras e, por momentos, ele e a criança olharam-se fixamente. Obrigado, sussurrou ele»

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Maio de 1517 a Junho de 1522
Primeiro de Maio
«(…) Cala-me essa boca, lançou o rapaz. O sujeito é um lombardo, Deus o faça assar. No entanto, momentos depois, ele e os restantes que se encontravam dentro da casa saíram para a rua, indo juntar-se aos homens que rodeavam o corpo. Estúpido imbecil, comentou o rapaz. Por que foi que não ficou quieto? E deu um violento pontapé ao corpo. Honor inspirou audivelmente. Ouvido aquele ruído, o rapaz voltou-se, observando com atenção as sombras do portal da taberna. Honor deixou-se escorregar para o chão, encostada à porta, sentindo as costas do vestido a raspar na madeira por polir, e ficou agachada ao canto, o coração a bater-lhe com força dentro do peito. O rapaz aproximou-se de um homem que trazia uma tocha e dirigiram-se juntos para a entrada da taberna. Venham cá ver, bradou o rapaz por sobre o ombro. Temos aqui uma pequena espia. E, apertando com força o punho da rapariga, tentou puxá-la para si. De onde é que tu apareceste, diabinho?
A tremer, Honor ofereceu resistência. Então o rapaz agarrou-a por baixo dos braços, ergueu-a no ar e abanou-a vigorosamente. Fala!, ordenou, e Honor vacilou sob o impacte daquele hálito, que fedia a cerveja rançosa. Ele voltou a abaná-la. És inglesa ou és uma maldita estrangeira? Ela não sabia o que havia de responder, porque não tinha bem a certeza do que seria uma estrangeira. Começou a sentir as costelas em fogo sob a pressão das mãos do rapaz. Oh, meu senhor eu só vinha dizer ao Ralph que voltasse para casa. E quem diabo é o Ralph? É o criado do meu pai. É estrangeiro? Deixa lá isso, disse um homem que tinha ficado junto do corpo e fazia agora menção de se ir embora. O Gilbey tem razão, interveio um segundo homem. Daqui a nada estão aí os homens do alcaide. Eu também me vou pôr a andar.
O rapaz largou Honor com tal violência, que ela teve dificuldade em manter o equilíbrio. Sem dizer mais palavra, homens e rapazes arrebanharam o produto do saque, deixando atrás de si pequenos montes de lixo, e dispersaram pelas vielas. A luz das tochas desapareceu e, como a Lua se escondera, a rua apareceu fria e escura. Viam-se documentos flutuando ao vento. As explosões de gritos e vidros partidos, indistintas e distantes, rolavam por sobre os telhados, acabando por se dissolver no ar que cobria Honor e o corpo, uma mancha escura no meio do lixo, que a rapariga via nitidamente do outro lado da rua. Ouviu-se um gemido e Honor sentiu que o coração se lhe comprimia, porque o ruído provinha do corpo. Per favore… qualcuno… O! Per pietà! Honor deixou-se ficar imóvel? Receosa, hesitante. Depois ouviu esgravatar nas pedras da rua: era um cão que farejava aquele lixo; em seguida, aproximou-se do corpo e começou a andar em seu redor. O homem não se mexeu. Va! Va via!, conseguiu dizer. O cão pareceu compreender que ele estava indefeso e aproximou o focinho do colarinho aberto do fato do homem. Per pietà-à-à! Sem pensar no que estava a fazer, Honor saltou do seu posto e, pegando numa vasilha de estanho, arremessou-a; o projéctil acertou na pata de trás do cão, que soltou um ganido. Depois, a rapariga pegou num pote e arremessou-lho. Nessa altura, o cão fez meia volta e desatou a correr pela rua fora.
Quem está aí?, perguntou o homem. Honor aproximou-se cautelosamente. A Lua surgiu de trás das nuvens, varrendo o corpo com a sua luz branca e fria, e Honor conseguiu distingui-lo com nitidez. Estava deitado de costas, sobre os braços, que ainda estavam atados. Os lenços e colares que tinha ao pescoço formavam um emaranhado de cor. O homem não se mexia, tinha os olhos fechados e deixara de gemer. Terá morrido?, perguntou a rapariga a si mesma. O homem ergueu as pálpebras e, por momentos, ele e a criança olharam-se fixamente. Obrigado, sussurrou ele. O cão... Calou-se, para tossir. Tem dores?, perguntou Honor. Não dores, respondeu ele, sorrindo ao de leve. Costas partidas. Não sinto nada... Muoro, prosseguiu, e a sua voz era apenas um fio, estou a morrer... Se está a morrer, pensou ela, como é que está a sorrir? Mas depois lembrou-se do que tinha de fazer. Senhor, vou chamar um padre. Não! Não é preciso! A súbita ferocidade do tom de voz surpreendeu-a. A rapariga não queria desobedecer-lhe, mas toda a gente sabia que Deus não permitia a entrada no céu a uma alma manchada por pecados não confessados. Mas o senhor tem de se confessar, insistiu ela, espantada com a ignorância do homem. Não queria nada que ele ardesse para sempre no fogo do inferno. Não, replicou ele, e já quase não se ouvia. Confissão..., padres..., orações..., não valem nada... Honor recuou um passo. O homem estava a blasfemar. Até ela, criança embora, percebia. Mas viu que lhe corria sangue do canto da boca, sangue que pingava sobre as pedras da rua como se fosse tinta. Se calhar está a ficar louco por estar a morrer, pensou. De outra maneira, não estava a sorrir. O senhor não tem medo de morrer?, perguntou de mansinho. Ainda por cima sozinho?» In Barbara Kyle, A Aia da Rainha, 2008, tradução de Maria José Figueiredo, Planeta Manuscrito, 2009/2010, Lisboa, ISBN 978-989-657-058-3.

Cortesia de PlanetaM/JDACT