terça-feira, 31 de maio de 2016

Navegar no 31. O Segredo da Bastarda. Cristiana Norton. «Chegou o dia em que a família e as duas criadas que os acompanhavam desde Guimarães embarcaram num barco chamado Gigante para o Brasil. Navegavam mais dois navios junto ao deles…»

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«(…) Tiveram de fazer as visitas de cortesia e ir aos beija-mãos no meio de nuvens de poeira, mas valeu a pena porque Rodrigo foi nomeado governador e Capitão-General de Minas Gerais, Baía e Grão-Pará. A nova situação obrigou-os a começarem a preparar as coisas para a viagem que estava marcada para daí a três meses, mas dessa vez dividiram as tarefas. Maria José tratou da compra de panos de linho, de algodão, de seda fina e também de chita da Índia, de cores sóbrias, como lhe recomendou o marido ao mostrar-lhe uma bolsa com moedas pesadas que o ministro lhe dera pessoalmente para que pudesse fazer face às despesas. Uma parte do dinheiro foi enviada a um tio da morgada, para que resgatasse as pratas que tinham ficado em casa do prestamista em Guimarães. Eram objectos que estavam na família havia várias gerações e Rodrigo tinha-se comprometido a recuperá-los assim que a sua situação económica o permitisse.
A entrada da casa encheu-se de coisas que eram descarregadas continuamente e Maria José teve de destinar um quarto espaçoso para irem pondo as caixas. O rodopio aumentou quando começaram a aparecer as costureiras e os alfaiates e invadiram os quartos de vestir de adultos e crianças, onde empilhavam peças dos mais variados panos para prepararem um enxoval digno do cargo e do clima do Brasil, oposto, em temperaturas e chuvas, ao do Minho. Tomaram medidas, sugeriram modelos, fizeram provas de vestidos de corte e redondos para os bailes, sapatos, luvas e enfeites de cabeça. Para as crianças, trajes de sair e de ir à missa, mas sobretudo roupa leve para andar por casa. O futuro governador declarou, com uma presunção nunca vista, que precisava de uma capa de seda preta com bandas ricamente bordadas, de chapéu de penas brancas, casacos curtos e abertos, por causa do calor, calções de tecido da Holanda em tom cru, ceroulas e cabeleiras. O alfaiate mandou o seu aprendiz assentar essas vontades todas, mantendo-se imperturbável, como se lhe estivessem a encomendar um par de camisas, enquanto a sua mente registava os cifrões com uma precisão de contabilista. Chegaram meias de seda de cor preta e pérola, e também branca para uso diário, de todos os tamanhos porque as crianças iam crescer todos os meses e não deviam encontrar-se nessas terras incivilizadas coisas tão imprescindíveis e, principalmente, de acordo com os costumes do reino.
Enquanto Maria José tratava desses assuntos de menor importância, Rodrigo dispôs-se a organizar a botica portátil aconselhando-se com um dos médicos da corte, que lhe fez uma lista dos trinta e tal remédios que convinha levar, e a ajuda do boticário que, além de lhe fornecer os produtos, lhes juntou umas folhas escritas pelo seu punho e letra com a enumeração das virtudes e a maneira de utilizar as drogas. O que a princípio lhe pareceu uma tarefa ingrata, deixou de o ser ao descobrir como se entretinha a mexer nos frascos, nos pós e nos unguentos que foram ocupando o compartimento destinado a cada um numa caixa de madeira nobre que mandara fazer. Perante o olhar atónito da mulher, que não conseguia acreditar que os serões se tivessem transformado em aulas de farmacologia, o governador descrevia os poderes curativos da água de canela, boa para a digestão, expulsar flatos, fortificar a cabeça e o coração; do bálsamo católico, que tanto servia para as feridas como para a dor de dentes; do óleo de amêndoas doces, que se usava externamente para qualquer dor e internamente nas deflexões, para adoçar a acrimónia da linfa, que ofendia muito. Maria José ouvia tudo com uma atenção fingida, muito mais preocupada com o avesso do ponto cruz, que a ajudava a suportar as intermináveis explicações do marido.
Chegou o dia em que a família e as duas criadas que os acompanhavam desde Guimarães embarcaram num barco chamado Gigante para o Brasil. Navegavam mais dois navios junto ao deles, porque nenhum capitão se arriscaria a atravessar sozinho os mares, onde costumavam surgir corsários, temporais, doenças ou outra situação inesperada que não seriam capazes de enfrentar sem ajuda. Depois de navegar duas semanas, avistaram o porto de Santiago, em Cabo Verde, que era a paragem obrigatória para se abastecerem de água doce e comprarem alimentos frescos para armazenarem no porão dos barcos. A família aproveitou os momentos livres para passear pela ilha: a nova condição de governador obrigava-o a fazer visitas a altos funcionários da coroa, ávidos de notícias, de cartas e de algum mexerico com que amenizar as longas tardes em que o mar lhes trazia sempre o mesmo som das ondas a desfazerem-se na areia, num ramerrão que lhes amolecia o corpo e os sentidos. Depois de se terem informado das novidades do reino e de indagarem sobre a vida dos Meneses, o desejo íntimo dos brancos da ilha era que acabasse a estada de pessoas ilustres para poderem novamente fechar o círculo e voltar à rotina, cansados de tanta cerimónia, dos sapatos que lhes apertavam os joanetes e do peso de uma roupa que não tinha sido pensada para essas latitudes e que tinham de usar nessas ocasiões». In Cristina Norton, O Segredo da Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-23-1047-3.

Cortesia de OLivro/JDACT