sábado, 28 de maio de 2016

Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «Jérôme assegurou-se de que Nicolas tinha a perna bem imobilizada, agarrou na seta e, com um gesto seco, arrancou-a. Maynard deu um salto, de olhos arregalados, e lançou um grito terrível»

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A pedra do exílio
Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…) Fabrico tapeçarias, senhor, respondeu o homem, analisando as fivelas que ainda tinha de soltar, e quero que o meu filho dê continuidade a esta arte numa cidade mais opulenta do que aquela em que cresci. De repente, interrompeu o discurso e apontou para a zona onde a seta estava cravada. Diacho!, exclamou. Infelizmente fostes atingido na ligação entre a coxa e a canela. Muitos dos meus companheiros depararam com um destino bem pior, replicou Maynard, com amargura. Removei esses fragmentos com cuidado, pediu-lhe depois, a perna dói-me bastante. Ainda não vos tínheis queixado, se bem me parece, gracejou o tapeceiro. Logo que ficou livre da armadura, o cavaleiro permitiu-se um suspiro de alívio. Por baixo da mesma, trazia vestidos uma casaca justa e um par de ceroulas completamente sujas, mas não se preocupou com isso. Poder mexer-se sem a armadura a estorvá-lo transmitia-lhe uma agradável sensação de leveza. Jérôme inclinou-se sobre a ferida. Não posso fazer mais, lamento, murmurou, consultando o filho. Se arriscasse extrair-vos a seta, poderia ser pior... Não receeis, irei ensinar-vos. Maynard vira tratar feridas semelhantes uma infinidade de vezes e, dispondo de dois ajudantes, estava certo de conseguir tratá-la. Desembainhou o punhal e usou-o para cortar as ceroulas até ao joelho, destapando a perna avermelhada e tumefacta. Só o facto de olhar para ela acentuou o seu sofrimento.
A vermelhidão tendia para o escuro, ao ponto de temer uma gangrena. Fareis como vos indicar, continuou, procurando esconder a preocupação. Deveis extrair a seta com um gesto decidido, ao meu sinal, e depois limpar a laceração com vinho ou vinagre. Além disso..., deu o punhal a Nicolas, cauterizareis a ferida com isto. Não seria melhor procurar ajuda?, perguntou o tapeceiro, hesitante. Os soldados que escaparam a Eduardo III não andarão muito longe. Entre eles, deve haver algum cirurgião capaz de vos tratar. A estas palavras, o cavaleiro foi invadido pela inesperada esperança de se reunir aos companheiros. Era provável que o rei Filipe VI tivesse recuado para sul, para Fontaine ou Amiens, a fim de deixar em segurança o que restava do exército e organizar a contraofensiva. Devia tentar juntar-se-lhe. Mas a ferida não podia esperar. Se passar mais um dia, arrisco-me a perder a perna... Por outro lado, estou demasiado fraco para me tratar sozinho. Franziu a testa, tornando-se quase ameaçador. Assim sendo, tendes de me ajudar. Já.
Tudo ficou pronto em pouco tempo. A mulher de Jérôme preparou um frasco de vinagre e faixas de tecido para usar como ligaduras, enquanto Nicolas colocou o punhal sobre as brasas. O cavaleiro chamou pai e filho para junto de si. Se tivesse sido atingido na coxa ou na barriga da perna, explicou, pedir-vos-ia que empurrassem a seta até a fazerem sair pelo lado oposto ao da entrada; portanto, seria suficiente cortá-la e puxá-la... Infelizmente, não podemos agir dessa forma. A ponta está a tocar no osso, não há outra solução senão arrancá-la. Nicolas tentou intervir, mas calou-se. Arrancá-la à força, sem hesitar, continuou Maynard. Vai doer-me muito, a carne irá lacerar, mas não deveis distrair-vos da vossa missão. E, depois, limpareis a ferida. Com uma expressão pouco convicta, Jérôme apertou os dedos em volta da seta. Muito bem, não percamos tempo. Estava alagado em suor e temia quase tanto como se tivesse de a retirar da própria perna. Um segundo, deteve-o o cavaleiro. Sou primeiro obrigado a pedir-vos outro serviço. Faço-o agora, no caso de perder os sentidos devido à dor. Estou a ouvir-vos, senhor. Se, de caminho, encontrardes vestígios da passagem do exército francês, peço-vos que me acompanheis até à presença dos meus irmãos de armas. O tapeceiro estudou-o, perplexo. E a minha família não ficará em perigo? Muito pelo contrário. Como vos disse, sereis recompensado. Está bem. Então, coragem, exortou-o Maynard. Vamos!
Jérôme assegurou-se de que Nicolas tinha a perna bem imobilizada, agarrou na seta e, com um gesto seco, arrancou-a. Maynard deu um salto, de olhos arregalados, e lançou um grito terrível, desafogando a dor, juntamente com a raiva, o medo e a humilhação. Um grito que trazia consigo desde a noite anterior. Depois caiu de costas, com a testa perlada de suor, lutando contra o sofrimento, enquanto as ligaduras embebidas em vinagre começavam a queimar-lhe a ferida. Ouviu a voz da rapaz: a seta está intacta... E em seguida a de Jérôme: limpa-lhe o sangue... Está aqui o punhal... Segura-o! Agora! Agora! E, finalmente, o chiar das brasas, o ferro aquecido sobre a carne.
Maynard gritou novamente. A gargalhada brutal de um homem dilacerou-lhe a memória como uma adaga. Mais dor e, por fim, a imagem do pai deitado sobre Eudeline». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.


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