terça-feira, 3 de maio de 2016

O Mercador de Livros Malditos. Marcello Simoni. «A noite passava-se no torpor de um céu rosado. Os confrades, dentro do mosteiro, cantavam as laudes. Willalme já se levantara. Ignazio, bocejando, deu graças a Deus por ter sobrevivido uma vez mais aos pesadelos»

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«(…) De repente, deixou de respirar e sentiu que se afundava. O pesadelo passou, dando lugar a um coro de vozes e de sons. E encontrou-se em fuga: transpunha montanhas com um valioso fardo entre os braços, o medo apertava-lhe o estômago e as pernas, o vento gelado fustigava-lhe o rosto. A neve desaparecera por entre o verde das coníferas e a esta paisagem sucedera outra, feita de colinas e depois de planície. O céu escurecia e os caminhos de terra eram agora labirintos perdidos entre rios e canais. Lagunas e pântanos no meio do nevoeiro. Enquanto, ao longe, os gritos dos perseguidores se tornavam prementes, finalmente, inesperada, a luz... E um sorriso. Maynulfo de Silvacandida.
A noite passava-se no torpor de um céu rosado. Os confrades, dentro do mosteiro, cantavam as laudes. Willalme já se levantara. Ignazio, bocejando, deu graças a Deus por ter sobrevivido uma vez mais aos pesadelos. Estendeu o braço e meteu a mão no bornal, tirou a carta que escrevera na noite anterior e entregou-a ao companheiro. Aqui tens. Não é uma tarefa perigosa, mas mantém-te atento. Estas lagunas têm olhos e ouvidos. Infelizmente não posso acompanhar-te, bem sabes. De momento, não quero correr o risco de que alguém me reconheça. Se seguires as minhas instruções, não haverá problemas. Descansa, meu amigo, e não te preocupes, respondeu Willalme. Regressarei o mais breve possível. O francês esgueirou-se da hospedaria e contornou o mosteiro sem que ninguém o visse, metendo pelo caminho direito aos diques. De repente ouviu um barulho e escondeu-se por detrás de um canavial. Um pequeno grupo de camponeses descia por um caminho com os pés e as mãos cheios de lama. Entre eles, Hulco, facilmente reconhecível por aquela forma desajeitada de andar. Dirigiam-se para o mosteiro. Transportavam uma meada de redes e de canastras de peixes vivos. O francês esperou que se afastassem, levantou-se e correu na direcção de um dique, depois do qual corria um canal. Um barqueiro esperava num barquito tosco. Willalme entrou a bordo de um salto, fez-lhe uma saudação e entregou ao homem quatro moedas. Leva-me à Abadia de Pomposa. O barqueiro acenou afirmativamente e, afundando uma longa vara no leito, impulsionou o barquito para a frente, fazendo-o voar para norte.
Depois do ofício da terça, já a manhã ia avançada, Ignazio saiu do quarto e perguntou a uns monges onde poderia encontrar Rainerio. Indicaram-lhe uma casa apalaçada que ficava muito perto, mesmo do outro lado, em frente do mosteiro. Pequena e sólida, a casa era decorada com elegantes motivos de terracota; no interior, o abade administrava os seus próprios feudos e dava andamento aos assuntos económicos e de representação. Era chamada de Castrum Abbatis. Alguns mendigos formavam um grupo, de pé, à porta da casa. Ignazio passou por eles sem problemas e transpôs a entrada principal. Depois percorreu o corredor do rés-do-chão, deixando para trás os acessos aos corredores laterais, e chegou a um portão de madeira que se situava ao fundo. Ouvia vozes do outro lado. Bateu, mas não obteve resposta. Queria falar com o abade, disse em voz alta, encostado à porta. A estas palavras, a conversa no interior foi interrompida e a resposta fez-se ouvir: mestre Ignazio, sois vós? Entrai, está aberto.
O mercador deu um passo em frente e entrou numa sala muito acolhedora. Nas paredes alternavam as armaduras e os ícones sagrados. Uma vista de olhos em redor revelou uma decoração de bom gosto, demasiado luxuosa, talvez, para os cânones de sobriedade previstos na regra beneditina. Os abades sentiam, por vezes, o desejo de brincar aos nobres. Rainerio Fidenza encontrava-se ao fundo da sala, inclinado por detrás de uma mesa pejada de registos e de pergaminhos. Sentado num banco forrado de veludo vermelho, parecia empenhado em ditar uns apontamentos a um jovem secretarius. Levantou os olhos e dirigiu-se cordialmente ao recém-chegado: mestre Ignazio, aproximai-vos, acabei mesmo agora os trabalhos. Depois, num tom impositivo, dirigiu-se ao secretário: vai, Ugucio, continuaremos mais tarde. O jovem monge limitou-se a concordar. Fechou o pequeno cadernito de capas enceradas em que estenografara os apontamentos e saiu fechando a porta atrás de si. Rainerio sorriu: Ignazio, a vossa presença é uma dádiva inesperada. Com um gesto cortês, convidou o hóspede a sentar-se num dos bancos à beira da mesa. Ontem ao jantar, não falastes muito. Nem sequer referistes o motivo da vossa visita». In Marcello Simoni, O Mercador de Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.

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