domingo, 22 de maio de 2016

O Erotismo. Georges Bataille. «É fácil perceber o que o erotismo dos corpos ou o dos corações designa, mas a ideia de erotismo sagrado é-nos menos familiar. A expressão é, aliás, ambígua…»

jdact e wikipedia

«(…) Essencialmente, ele morreu, visto que não sobrevive em nenhum dos dois seres que produziu. Ele não se decompõe à maneira dos animais sexuados que morrem, mas deixa de ser. Ele deixa de ser na medida em que era descontínuo. Somente, num ponto da reprodução, houve descontinuidade. Há um ponto em que o um primitivo transforma-se em dois. Desde que há dois, há de novo descontinuidade de cada um dos seres. Mas a passagem implica entre os dois um instante de continuidade. O primeiro morre, mas aparece na sua morte um instante fundamental de continuidade de dois seres. A mesma continuidade não pode aparecer na morte dos seres sexuados, cuja reprodução é, em princípio, independente da agonia e do desaparecimento. Mas a reprodução sexual, que na sua base põe em acção a divisão das células funcionais, da mesma maneira que na reprodução assexuada, faz intervir uma nova espécie de passagem da descontinuidade à continuidade. O espermatozoide e o óvulo estão no estado elementar dos seres descontínuos, mas unem-se e, em consequência disso, uma continuidade estabelece-se entre eles para formar um novo ser, a partir da morte, do desaparecimento dos seres separados. O novo ser é, ele mesmo, descontínuo, mas traz em si a passagem à continuidade, a fusão, mortal para cada um deles, dos dois seres distintos.
Para esclarecer essas mudanças que podem parecer insignificantes mas que são a base de todas as formas de vida, eu sugiro-lhes imaginar arbitrariamente a passagem do estado em que estão a um perfeito desdobramento das suas pessoas, ao qual não poderão sobreviver, uma vez que os duplos nascidos seriam diferentes de uma maneira essencial. Necessariamente, cada um desses duplos não seria o mesmo que aqueles que são agora. Para ser o mesmo, um dos duplos deveria, com efeito, ser contínuo ao outro e não oposto, como geralmente acontece. Existe aí algo de estranho que a imaginação tem dificuldade de acompanhar. No entanto, se imaginarem entre um de seus semelhantes e vocês uma fusão análoga à do espermatozoide e do óvulo, poderão imaginar sem grande dificuldade a mudança de que estou falando. Não estou sugerindo essas imagens grosseiras com o objectivo de ser mais preciso. Entre as consciências claras que somos e os seres ínfimos em questão, a distância é considerável. Eu os advirto, porém, do hábito de olhar unicamente de fora esses seres ínfimos; e também de olhá-los como coisas que não têm existência no dentro. Nós existimos no dentro. O mesmo acontece com um cão e, consequentemente, com um insecto ou algo menor. Por mais simples que seja um ser, não há limiar a partir do qual se evidencia essa existência de dentro. Esta não pode ser um resultado da complexidade crescente.
Se os seres ínfimos não tivessem inicialmente, à sua maneira, uma existência no dentro, nenhuma complexidade poderia fazê-la vir à tona. A distância não deixa de ser grande entre esses animálculos e nós. As fantasias extravagantes que propus não podem, pois, receber um sentido preciso. Eu quis somente evocar, de uma maneira paradoxal, as mudanças ínfimas em questão, que estão na base da nossa vida. Na nossa origem, há passagens do contínuo ao descontínuo ou do descontínuo ao contínuo. Somos seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente numa aventura ininteligível, mas temos a nostalgia da continuidade perdida. Não aceitamos muito bem a ideia que nos relaciona a uma dualidade de acaso, à individualidade perecível que somos. Ao mesmo tempo que temos o desejo angustiado da duração desse perecimento, temos a obsessão de uma continuidade primeira que nos une geralmente ao ser. A nostalgia de que falo nada tem a ver com o conhecimento dos dados fundamentais a que aludi. Alguém pode sofrer por não estar no mundo como uma onda perdida na multiplicidade das ondas, que ignora os desdobramentos e as fusões dos seres mais simples. Mas essa nostalgia comanda em todos os homens as três formas do erotismo, a saber: o erotismo dos corpos, o erotismo dos corações e, finalmente, o erotismo sagrado. Falarei dessas formas a fim de deixar bem claro que nelas o que está sempre em questão é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda.
É fácil perceber o que o erotismo dos corpos ou o dos corações designa, mas a ideia de erotismo sagrado é-nos menos familiar. A expressão é, aliás, ambígua, na medida em que todo erotismo é sagrado, mas nós encontramos os corpos e os corações sem entrar na esfera sagrada propriamente dita. A busca de uma continuidade do ser perseguida sistematicamente para além do mundo imediato aponta uma abordagem essencialmente religiosa; sob a sua forma familiar no Ocidente, o erotismo sagrado confunde-se com a busca, exactamente com o amor de Deus, mas o Oriente dá continuidade a uma busca semelhante, sem necessariamente colocar em jogo a representação de um Deus. O budismo, em particular, não precisa dessa ideia. De qualquer maneira, quero insistir desde já na significação de minha tentativa. Esforcei-me para introduzir uma noção que podia, à primeira vista, parecer estranha, inutilmente filosófica, a de continuidade, oposta à descontinuidade do ser. Posso, enfim, sublinhar o facto de que, sem essa noção, a significação geral do erotismo e a unidade de suas formas nos escapariam». In Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa, L&PM Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972 608-018-3.

Cortesia de L&PM/E Antígona/JDACT