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«(…)
Essencialmente, ele morreu, visto que não sobrevive em nenhum dos dois seres
que produziu. Ele não se decompõe à maneira dos animais sexuados que morrem,
mas deixa de ser. Ele deixa de ser na medida em que era descontínuo. Somente, num
ponto da reprodução, houve descontinuidade. Há um ponto em que o um primitivo
transforma-se em dois. Desde que há dois, há de novo descontinuidade de
cada um dos seres. Mas a passagem implica entre os dois um instante de
continuidade. O primeiro morre, mas aparece na sua morte um instante
fundamental de continuidade de dois seres. A mesma continuidade não pode
aparecer na morte dos seres sexuados, cuja reprodução é, em princípio,
independente da agonia e do desaparecimento. Mas a reprodução sexual, que na sua
base põe em acção a divisão das células funcionais, da mesma maneira que na
reprodução assexuada, faz intervir uma nova espécie de passagem da descontinuidade
à continuidade. O espermatozoide e o óvulo estão no estado elementar dos seres
descontínuos, mas unem-se e, em consequência disso, uma continuidade estabelece-se
entre eles para formar um novo ser, a partir da morte, do desaparecimento dos seres
separados. O novo ser é, ele mesmo, descontínuo, mas traz em si a passagem à continuidade,
a fusão, mortal para cada um deles, dos dois seres distintos.
Para
esclarecer essas mudanças que podem parecer insignificantes mas que são a base
de todas as formas de vida, eu sugiro-lhes imaginar arbitrariamente a passagem
do estado em que estão a um perfeito desdobramento das suas pessoas, ao qual
não poderão sobreviver, uma vez que os duplos nascidos seriam diferentes de uma
maneira essencial. Necessariamente, cada um desses duplos não seria o mesmo que
aqueles que são agora. Para ser o mesmo, um dos duplos deveria, com efeito, ser
contínuo ao outro e não oposto, como geralmente acontece. Existe aí algo de estranho
que a imaginação tem dificuldade de acompanhar. No entanto, se imaginarem entre
um de seus semelhantes e vocês uma fusão análoga à do espermatozoide e do
óvulo, poderão imaginar sem grande dificuldade a mudança de que estou falando. Não
estou sugerindo essas imagens grosseiras com o objectivo de ser mais preciso. Entre
as consciências claras que somos e os seres ínfimos em questão, a distância é considerável.
Eu os advirto, porém, do hábito de olhar unicamente de fora esses seres ínfimos;
e também de olhá-los como coisas que não têm existência no dentro. Nós existimos no dentro. O
mesmo acontece com um cão e, consequentemente, com um insecto ou algo menor.
Por mais simples que seja um ser, não há limiar a partir do qual se evidencia
essa existência de dentro. Esta não pode ser um resultado da
complexidade crescente.
Se
os seres ínfimos não tivessem inicialmente, à sua maneira, uma existência no dentro,
nenhuma complexidade poderia fazê-la vir à tona. A distância não deixa de ser
grande entre esses animálculos e nós. As fantasias extravagantes que propus não
podem, pois, receber um sentido preciso. Eu quis somente evocar, de uma maneira
paradoxal, as mudanças ínfimas em questão, que estão na base da nossa vida. Na
nossa origem, há passagens do contínuo ao descontínuo ou do descontínuo ao contínuo.
Somos seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente numa aventura ininteligível,
mas temos a nostalgia da continuidade perdida. Não aceitamos muito bem a ideia
que nos relaciona a uma dualidade de acaso, à individualidade perecível que
somos. Ao mesmo tempo que temos o desejo angustiado da duração desse
perecimento, temos a obsessão de uma continuidade primeira que nos une
geralmente ao ser. A nostalgia de que falo nada tem a ver com o conhecimento
dos dados fundamentais a que aludi. Alguém pode sofrer por não estar no
mundo como uma onda perdida na multiplicidade das ondas, que ignora os
desdobramentos e as fusões dos seres mais simples. Mas essa nostalgia comanda
em todos os homens as três formas do erotismo, a saber: o erotismo dos corpos,
o erotismo dos corações e, finalmente, o erotismo sagrado. Falarei dessas
formas a fim de deixar bem claro que nelas o que está sempre em questão é
substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de
continuidade profunda.
É
fácil perceber o que o erotismo dos corpos ou o dos corações designa, mas a ideia
de erotismo sagrado é-nos menos familiar. A expressão é, aliás, ambígua, na
medida em que todo erotismo é sagrado, mas nós encontramos os corpos e os
corações sem entrar na esfera sagrada propriamente dita. A busca de uma
continuidade do ser perseguida sistematicamente para além do mundo imediato
aponta uma abordagem essencialmente religiosa; sob a sua forma familiar no
Ocidente, o erotismo sagrado confunde-se com a busca, exactamente com o amor
de Deus, mas o Oriente dá continuidade a uma busca semelhante, sem
necessariamente colocar em jogo a representação de um Deus. O budismo, em particular,
não precisa dessa ideia. De qualquer maneira, quero insistir desde já na
significação de minha tentativa. Esforcei-me para introduzir uma noção que
podia, à primeira vista, parecer estranha, inutilmente filosófica, a de
continuidade, oposta à descontinuidade do ser. Posso, enfim, sublinhar o facto
de que, sem essa noção, a significação geral do erotismo e a unidade de suas
formas nos escapariam». In Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968,
tradução de João Bernard Costa, L&PM Editores, 1987, Editora Antígona,
Lisboa, 1988, ISBN 978-972 608-018-3.
Cortesia
de L&PM/E Antígona/JDACT