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O rei Dinis I e a Rainha Santa Isabel
«(…) O povo vai construir a imagem
de um rei que vive entre guerras e assuntos de alcova, de tal modo que não se
conseguirá, depois, separar a realidade da caricatura. Por isso, as trovas que o
monarca Dinis escreve hão-de ser sentenciadas como devaneios sentimentais
acerca das suas alegadas conquistas amorosas. Por oposição, a imagem da rainha
solitária, distante dos prazeres carnais, sacrificada a educar os filhos dela e
os das outras, ajudará a criar em volta de dona Isabel a aura de mulher, esposa
e mãe perfeitas, em caminho penitencial rumo à santidade. À imagem das
antepassadas, mas possivelmente indo ainda mais longe, a rainha vai usar das
suas rendas e autonomia para se dedicar a um épico trabalho de apoio social. Sozinha
num mundo de homens, movimenta dinheiros e influências para construir obras de
misericórdia. Em Santarém, funda o Hospital dos Inocentes Enjeitados; em
Leiria, um hospital e uma gafaria; em Coimbra, o Hospício dos Pobres, o
Hospital de Velhas Inválidas e o Recolhimento para a Regeneração das
Desgraçadas. Manda construir albergarias em Estremoz, Alenquer e Odivelas, e
uma gafaria em Óbidos. A obra mais emblemática, o Mosteiro de Santa Clara,
diante de Coimbra, mandara-a levantar volvidos quatro anos de casamento.
Estes são os factos. Ao redor deles
conta-se depois um ror de coisas. Que acompanhava pessoalmente as obras e dava
indicações precisas de arquitectura e engenharia. Que tinha conhecimentos de
medicina e enfermagem, criando mezinhas próprias (já depois da sua morte,
diz-se que as freiras de Santa Clara tratavam mulheres sem leite para amamentar
com um remédio criado pela rainha à base de penas de galinha branca). Que
vendia as suas jóias para comprar trigo a reinos estrangeiros com que saciar a
fome aos pobres. Que tratava chagados e leprosos com as próprias mãos e curava
doentes no simples movimento de lhes beijar as feridas. Que saía às escondidas do
marido para distribuir esmolas. E que, numa dessas ocasiões, teria sucedido o
célebre milagre das rosas, descrito nestes termos por frei Marcos Lisboa, na Crónica
dos Frades Menores.
Levava uma vez a Rainha Santa
moedas no regaço,
para dar aos pobres. Encontrando-a,
el-rei lhe perguntou
o que levava. Ela disse: levo aqui
rosas.
E rosas viu el-rei, não sendo tempo
delas.
Curiosamente, este
episódio só surgiria relatado pela primeira vez cerca de um século depois da
morte da rainha.
E era em tudo semelhante a um outro que se contava já acerca da sua tia-avó
homónima, Santa Isabel da Hungria. Mas há todo um outro género de lendas em
volta da Rainha Santa. Um conjunto menos religioso e mais humorístico, dedicado
à toponímia e mais directamente inspirado nos seus desamores com o marido... De
acordo com uma determinada corrente popular, Dinis não se teria interessado por
Odivelas na tal caçada em que fora salvo pelos santos dum urso feroz, mas
porque a zona seria ponto de encontro recorrente com as amantes. Assim, de
acordo com esta versão, certa vez teria a rainha perdido a paciência com as
ausências do esposo e decidido procurá-lo. Encontrando-o na dita região às
portas de Lisboa, teriam encetado acalorada conversa. Perante a obstinação do
rei em regressar ao palácio sem antes tratar dos assuntos que ali o haviam
trazido, Isabel teria então respondido: oh! Ide vê-las, senhor! De
Oh-ide-velas, a Odivelas teria sido, pois, um pequeno pulo coloquial.
Na
mesma minha de raciocínio, dá-se a explicação para a origem do nome Lumiar,
ligeiramente mais abaixo no mapa nacional. A mesma situação, a mesma atitude:
estando Dinis ausente, dona Isabel parte à sua procura, desta vez acompanhada de
alguns criados, empunhando tochas. Ao ver a mulher por aquelas paragens, Dinis
ter-lhe-ia perguntado que fazia ali, àquelas horas da noite. Resposta da
rainha: vinha alumiar o caminho ao
esposo, dado que este se encontrava cego de amor». In Alexandre Borges, Histórias
Secretas de Reis Portugueses, Casa das Letras, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.
Cortesia
de CdasLetras/JDACT