quarta-feira, 25 de maio de 2016

A Alma das Pedras Paloma Sanchez-Garnica. «É possível que esteja aqui alguém enterrado, mas não vejo nenhuma inscrição gravada na pedra. Quando se preparava para se levantar, viu algo que lhe despertou a atenção. Era uma marca lapidar…»

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Ano da Era do Senhor de 824. A origem de tudo
«(…) O escrivão dirigiu-se imediatamente aos soldados e ordenou-lhes que arrancassem a vegetação que tinha engolido aquele monumento. A espera foi tensa e os homens passaram um bom bocado a arrancar ramos, silvas e outras ervas daninhas e tiveram até de cortar talos quase tão grossos como troncos de árvores. Martín olhava para o bispo Teodomiro pelo canto do olho porque o notava inquieto incomodado, o que era muito pouco comum num homem cuja serenidade muito poucos assuntos alteravam. Perguntava a si mesmo o que lhe estaria a passar pela cabeça. Talvez os efeitos do jejum o tenham afectado mais do que o habitual. Já estavam há mais de três dias naquele 1ocal húmido e inóspito, dormindo no chão, à espera de um milagre que nunca mais se materializava. Talvez fosse o esgotamento, de que ele também começava a padecer, o que estava a levar o bispo a perder a sua tranquilidade habitual. Sentiu pena dele. Considerava-o um bom homem, um homem justo e cauteloso nas suas decisões que lutava contra ventos e tempestades para acabar com o desânimo e, portanto, o abandono em que se encontrava a sede episcopal iriense, que regia, bem como com o desânimo dos seus fiéis, desamparados e apegados às habituais práticas druídicas e pagãs.
Quando, finalmente, conseguiram libertar a frente do monumento, Teodomiro inspeccionou o que lhe parecia ser uma entrada e ordenou que tentassem abri-la. Os soldados esforçaram-se por mover a pedra que impedia o acesso ao interior do túmulo, mas a sua vontade de pouco lhes valeu, porque o pedregulho parecia impossível de mover. Depois de várias tentativas, conseguiram usar um tronco como alavanca e, muito lentamente, foram deslocando a enorme pedra que lhes impedia o acesso. Quando o vão se tornou suficientemente amplo para permitir a passagem de um homem, o bispo ordenou-lhes que se afastassem. Pegou numa das tochas e virou-se para Paio, que, arrebatado pela emoção, tinha os olhos a brilhar. Vamos lá ver o que há aqui dentro. Um momento, Eminência, pediu Martín. Permiti que eu entre primeiro, pois não sabemos o que pode estar aí dentro e podeis ferir-vos. Teodomiro esboçou um sorriso de gratidão para com o seu escrivão. Sentia um grande afecto por aquele monge que se mostrava sempre tão preocupado com o seu bem-estar. Fez-lhe um gesto e deixou-o passar primeiro.
Martín introduziu a mão com a tocha no buraco estreito e passou ao interior, iluminando o espaço em seu redor. Encontrava-se num espaço estreito e de tecto baixo, com uma espécie de altar de pedra no centro. Aproximou-se dele e inspeccionou-o. O que vês, Martín? Entrai, Eminência. Parece que não há perigo. Martín viu a mão do bispo trazendo a luz da tocha. Quando este acabou de entrar, olharam-se ambos por instantes, percorrendo em seguida aquele espaço diminuto com o olhar. Logo a seguir a Teodomiro, surgiu o vulto miúdo do eremita. Martín fixou o olhar naquele homem. Nunca se tinha fiado nas suas palavras, porém ele revelara-se tão insistente ao longo de tantos anos que considerara conveniente a visita àquele sítio do monte de Libredón como única forma de dar credibilidade às suas visões e alucinações de velho louco e solitário. No entanto, quando o eremita entrou naquele lugar, Martín vislumbrou-lhe um brilho especial nos olhos e a sua expressão revelava um regozijo impossível de ocultar. Era um sentimento comedido, mas evidente. Santo Deus!, exclamou Paio. Que o Senhor seja louvado! Está enterrado aqui!
Não me vais dizer, Paio, começou Teodomiro, olhando para ele, que conheces a identidade daquele que dorme aqui o seu sono eterno, disse, aproximando-se do altar, sob o qual parecia existir uma sepultura. Paio nada respondeu. Entretanto, Martín examinava, de cócoras, o que havia debaixo do altar de pedra aproximando a chama da pequena tocha que trazia na mão. É possível que esteja aqui alguém enterrado, mas não vejo nenhuma inscrição gravada na pedra. Quando se preparava para se levantar, viu algo que lhe despertou a atenção. Era uma marca lapidar gravada na linha do ângulo que formava a pedra do altar. Ouviu Paio sussurrar algo que não conseguiu perceber, a Teodomiro. Observou o sinal demoradamente e, quando ergueu os olhos, o seu olhar cruzou-se com o de Paio. O eremita dirigiu-se ao bispo sem desviar os olhos do monge escrivão. Eminência, como já lhe disse, um anjo revelou-me que, há séculos, o corpo do apóstolo S. Tiago foi trasladado para esta terra.
Martín levantou-se. Continuava inquieto e receoso com a atitude daquele homem, que se fazia passar por iluminado mas que, de repente, passou a suscitar a sua desconfiança. Nem sequer sabemos se isto é realmente um túmulo e já queres dar nome ao cadáver!, censurou o bispo. Eminência, replicou Paio, com humildade, não sou eu quem diz, mas Deus quem o põe diante de vossos olhos. Não achas que é demasiada presunção imaginar tal coisa, Paio?, indagou Teodomiro, manifestando o incómodo evidente que lhe causaram as palavras do eremita. Além disso, o Apóstolo S. Tiago morreu na Terra Santa e aí foi enterrado. Não há nada que indique que o seu corpo tenha sido enterrado nestas terras. Isto é a finis terrae, portanto estamos nos confins do mundo, esquecidos por todos. Como poderia estar aqui o corpo do apóstolo sem que ninguém tivesse reparado nisso? É uma noção insustentável... Eminência, insistiu Paio, há fontes que indicam que S. Tiago Maior pregou nesta zona. Está incluído no Breviário dos Apóstolos um manuscrito anónimo com mais de dois séculos de existência». In Paloma Sanchez-Garnica, A Alma das Pedras, tradução de Miguel Coutinho, Saída de Emergência, 2010, ISBN 978-989-637-288-0.

Cortesia SEmergência/JDACT