terça-feira, 24 de maio de 2016

O Nó do Amor. Elizabeth Chadwick. «Nem em três anos de viagens pelos lugares mais selvagens desta terra de Deus alguma vez vi uma coisa como esta, disse ele, com a voz rouca. É melhor que te acostumes»

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Floresta de Dean. Gloucestershire. Verão de 1140
«Oliver Pascal puxou as rédeas de Hero e cheirou o ar. Fumo, disse ele.
Gawin Brionne, o companheiro de armas, deteve a sua própria montada e inalou profundamente. Aqui perto só há o pavilhão de caça em Penfoss. É Aimery Sens que cuida dele para o conde Robert. Oliver soltou um grunhido e mudou de posição para acomodar as nádegas doridas. As selas novas eram sempre um inferno, e aquela mal tinha uma semana, adquirida que fora a um artesão de Bristol. Levaria pelo menos um mês a moldá-la numa forma confortável. O que Oliver queria fazer era atravessar o Severn no barco de transporte e continuar a cavalo até aos domínios do conde em Bristol, onde teria seguramente uma refeição quente e um lugar seguro para dormir. Com a guerra civil a devastar cada cidade e condado enquanto o rei Estêvão e a sua prima Matilde lutavam ferozmente pelo trono de Inglaterra, as oportunidades para se dormir em segurança escasseavam. Um homem mais acostumado às depredações daquela guerra em particular poderia ter seguido em frente, mas Oliver estava ainda verde para o jogo de incursão e contra-incursão, de pilhagem e carnificina, um jogo que se estava a tornar tão comum que a moral e as sensibilidades humanas eram extirpadas pela raiz. Durante a maior parte do conflito, ele estivera ausente, em peregrinação, e sobre o chão rochoso do Santo Sepulcro, em Jerusalém, arrastara um fardo de preces pela alma da sua esposa falecida. Fora apenas há seis meses que regressara a uma terra que ardia e sangrava, e que viera a descobrir que, como tantos outros, ele se tornara um homem sem terras.
Gawin, que era cinco anos mais novo, com vinte e um, mas tinha um mundo de experiência a mais, agitou as rédeas e recomeçou a andar. Provavelmente é apenas um carvoeiro. Acreditas nisso? Gawin encolheu os ombros. Não podemos fazer nada. Não é sensato que nos deixemos arrastar para isto. Oliver abanou a cabeça. Talvez não, mas não podemos simplesmente ignorar e continuar o nosso caminho. O cavaleiro mais novo suspirou, com fadiga nos olhos azuis que permaneciam à sombra do elmo. A tua consciência é uma mó que carregas à volta do pescoço. Oliver comprimiu os lábios. Ao contrário da maior parte dos seus contemporâneos, usava a barba bem escanhoada, pois, em contraste com o cabelo cor de linho, a sua barba, quando lhe era permitido crescer, assumia um ardente vermelho-fogo que o fazia sentir como um fenómeno da natureza. Deixa que a minha consciência me arraste para onde quiser e procura pela tua, disse ele friamente, e virou Hero na direcção do cheiro a queimado. Gawin hesitou por um momento e, depois, fazendo rolar os olhos, foi atrás do seu companheiro.
No espaço de meia milha, as baforadas de fumo tornaram-se mais fortes, removendo a esperança de que a sua fonte fosse um controlado fogo doméstico, e foram-se adensando significativamente, à medida que os homens atingiam o caminho principal para Penfoss. Os cavalos ficaram inquietos e difíceis de manobrar, e os dois cavaleiros foram forçados a desmontar e continuar a pé. Penfoss era cercada por uma paliçada de afiadas estacas de carvalho cortadas da floresta circundante e montada com cordas de cânhamo. A paliçada pendia agora numa posição inclinada e, do outro lado, o telhado de colmo do pavilhão de caça e os edifícios exteriores eram obliterados por línguas de chamas e colunas de fumo negro. Cautelosamente, de armas em punho, Oliver e Gawin abandonaram a cobertura oferecida pelas árvores e aproximaram-se da paliçada. Viram o corpo de um homem estatelado no portão. Havia um corte aberto na sua garganta, e ele fora despido de todas as vestes excepto o pano que lhe cingia os rins, que ele manchara nos seus estertores de morte. Um enorme cão preto jazia ao seu lado, de peito aberto.
Gawin fez uma careta e olhou em volta nervosamente. Partamos. Já não há nada a fazer aqui e quem quer que tenha provocado tudo isto ainda deve estar por perto. Ignorando-o, Oliver entrou no recinto. Flocos de fuligem elevavam-se num vento de fogo e rajadas de calor eram vomitadas em cima dele. Os corpos juncavam o pátio ao acaso, abatidos em fuga, a julgar pela quantidade de ferimentos nas costas. Armados e desarmados; homens, mulheres e crianças. A boca de Oliver encheu-se de fluido e ele apertou o punho da sua espada. Era isso ou atirar com ela para o mais longe que conseguisse. Nem em três anos de viagens pelos lugares mais selvagens desta terra de Deus alguma vez vi uma coisa como esta, disse ele, com a voz rouca. É melhor que te acostumes. Havia na voz de Gawin um tremor que desmentia a indiferença das palavras, e a sua mão livre procurou a cruz que trazia em volta do pescoço.
Oliver prosseguiu. Uma brilhante massa de cabelo dourado atraiu-o ao corpo de uma mulher. Ela estava caída de costas, com as pernas abertas. Os seus olhos abertos olhavam para o céu cegamente; tinha a face inchada e o lábio pisado, mas ainda respirava. Misericórdia de Deus! Oliver caiu de joelhos ao seu lado. Amice, Amice, consegues ouvir-me? Conhece-la? A voz de Gawin era de consternação. Desde há muito tempo, disse Oliver sem olhar para trás. Era uma das pupilas do conde Robert, juntamente com a minha mulher. Se as circunstâncias tivessem sido diferentes, eu podia até ter casado com ela e não com Emma. Pela piedade de Jesus, não acredito nisto! Ele juntou-lhe as pernas e puxou-lhe o vestido sobre as coxas pisadas e ensanguentadas. A mulher voltou a cabeça e olhou para Oliver, mas não havia sinal de reconhecimento nos seus escuros olhos cor de safira. Gawin cofiou a barba curta que lhe contornava o queixo. É muito grave? Não sei. Foi espancada e violada, pelo que consigo perceber. Não podemos deixá-la neste lugar. Vai buscar os cavalos». In Elizabeth Chadwick, O Nó do Amor, 1998, Edições Chá das Cinco, 2013, ISBN 978-989-710-057-4.

Cortesia de ECdasCinco/JDACT