sábado, 7 de maio de 2016

Alves e Companhia. Eça de Queirós. «Então Alves lembrou-se da carta do sócio, que estava sobre a sua escrivaninha. Abriu-a; as duas primeiras linhas explicavam a ida ao Lumiar; depois, com efeito, começava, a respeito do Colares...»

jdact e wikipedia

«Nessa manhã, Godofredo da Conceição Alves, encalmado, soprando de ter vindo do Terreiro do Paço quase a correr, abria o batente de baetão verde, do seu escritório num entressolo da rua dos Douradores, quando o relógio de parede pôr cima da carteira do guarda-livros batia duas horas, naquele tom, cavo, a que os tectos baixos do entressolo davam uma sonoridade dolente, e cava. Godofredo parou, verificou o seu próprio relógio preso pôr uma corrente de cabelo sobre o colete branco, e não conteve um gesto de irritação vendo a sua manhã assim perdida, pelas repartições do Ministério da Marinha: e era sempre assim quando o seu negócio de comissões para o Ultramar o levava lá: apesar de ter um primo de sua mulher, director-geral, de escorregar de vez em quando uma placa na mão dos contínuos, de ter descontado a dois segundos oficiais letras de favor, eram sempre as mesmas dormentes esperas pelo ministro, um folhear eterno de papelada, hesitações, demoras, todo um trabalho irregular, rangente e desconjuntado de velha máquina meio desparafusada. Sempre o mesmo encaranguejamento, exclamou ele, pousando o chapéu sobre a carteira do guarda-livros. Dá vontade de os espicaçar como aos bois: Eh Ruço para diante! Eh Malhado! O guarda-livros, um moço de ar amarelado e doente, sorriu. Espalhou areia sobre a larga folha que acabava de escrever, e disse, sacudindo-a: o sr. Machado deixou um bilhete lá dentro..., diz que ia ao Lumiar. Então Godofredo, que limpava a testa com o lenço de seda, sorriu também, de leve, passando logo pelo bigode o lenço, escondendo o sorriso... Depois examinou a correspondência, que o guarda-livros continuava a polvilhar de areia.
Um momento uma carroça, fora, atroou a rua estreita, com um ruído de ferragens sacudidas: depois tudo caiu num silêncio. Um caixeiro, agachado diante dum caixote enorme, escrevia um nome sobre a tampa. A pena de pato rangia, por cima o relógio batia um tic-tac forte. E naquele grande calor do dia, no abafamento dos tectos baixos, subia dos caixotes, de dois fardos, do pó da papelada, um cheiro vago de ranço, e de mercearia. O sr. Machado estava ontem em D. Maria, disse então o guarda-livros, sem cessar de escrever. Alves largou logo a carta que lia, interessado, com o olhar mais vivo: que ia ontem? O Trapeiro de Paris... Que tal? O guarda-livros ergueu os olhos da carta para responder: eu gostei muito do Teodorico... Alves ainda ficou esperando algum outro detalhe, uma apreciação. Mas o guarda-livros retomara a pena, e ele recontinuou a sua leitura. Depois o trabalho do caixeiro agachado interessou-o um instante. Seguia o pincel, gozava as curvas das letras. Ponha-lhe um til. Fabião tem um til... E, como o caixeiro se embaraçou um momento, ele próprio se abaixou, tomou o pincel, deu o seu til a Fabião. Fez ainda uma recomendação ao guarda-livros sobre uma remessa de baetão vermelho para Luanda e, empurrando outro batente verde, descendo dois degraus, porque naquele entressolo os pavimentos eram de níveis diferentes, penetrou enfim no seu gabinete, pôde desabotoar o colete, estender-se enfim numa poltrona de reps verde.
Fora, um dia de julho abrasava, faiscava na pedra dos passeios: mas ali, naquele gabinete, onde nunca dava o sol, assombreado pelos altos prédios fronteiros, havia uma frescura; as persianas verdes estavam corridas fazendo uma penumbra; e o verniz das duas carteiras, a dele e a do seu sócio, a esteira que cobria o chão, o reps verde da cadeira bem escovado, uma moldura de ouro encaixilhando uma vista de Luanda, a alvura dum grande mapa, tinham um ar de arranjo, de ordem, que punha como um repouso, uma frescura maior. Havia, mesmo, um ramo de flores, que sua mulher, a boa Lulu, lhe tinha mandado havia dias, compadecida de o saber toda uma daquelas manhãs de calma, no abafamento dum escritório, sem uma cor de flor para alegrar os olhos. Ele tinha posto o ramo sobre a carteira do Machado. Mas, sem água, as flores murchavam. O batente verde abriu-se, o guarda-livros mostrou a face amarelada e doente: o sr. Machado deixou alguma recomendação a respeito do vinho de Colares para o Cabo Verde?
Então Alves lembrou-se da carta do sócio, que estava sobre a sua escrivaninha. Abriu-a; as duas primeiras linhas explicavam a ida ao Lumiar; depois, com efeito, começava, a respeito do Colares... Alves deu a carta ao guarda-livros. O batente fechou-se de novo, e Alves agora tinha outra vez o sorriso de há pouco, mas que não disfarçava. Desde o começo do mês, era a Quarta ou Quinta vez que o Machado desaparecia assim do escritório, ora para ir ao Lumiar ver a mãe, ora mesmo, sem razões, ou com esta palavra vaga: um negociozito. E Alves sorria ainda, percebia bem o negociozito. Machado tinha vinte e seis anos; e era bonito moço, com o seu bigodito louro, o cabelo anelado, e o ar elegante. As mulheres gostavam dele. Desde que eram sócios, Alves conhecera-lhe três ligações: uma linda espanhola, que, apaixonada pôr ele, deixara um brasileiro rico, um antigo presidente de província, que lhe pusera casa; depois uma atriz de D. Maria, que não tinha nada senão uns bonitos olhos; e agora aquele negociozito. Mas estes amores decerto eram mais delicados, tomando um lugar maior no coração, na vida de Machado… Alves sentia-o bem, pôr certo ar inquieto e preocupado do sócio, o quer que fosse de contrafeito, de triste pôr vezes... Também o Machado nunca lhe dissera nada, não mostrara jamais a mais leve tendência para uma efusão, uma confidência. Eram íntimos, Machado ia passar muitas noites à casa dele, tratava a Lulu quase como uma irmã, jantava lá todos os domingos mas, ou porque tivesse entrado na firma comercial havia apenas três anos, ou porque era dez anos mais novo, ou porque Alves fora amigo de seu pai e um dos testamenteiros, ou porque era casado, Machado conservava para com ele uma certa reserva, um vago respeito, nunca entre eles se estabelecera uma verdadeira camaradagem de homens. Também Alves não lhe dizia nada. O negociozito não pertencia aos interesses da firma. Ele não tinha nada com isso. Apesar daquelas ausências repetidas, Machado continuava a ser muito trabalhador, amarrado à carteira dez e doze horas em dias de paquete, activo, fino, vivendo todo para a prosperidade da firma: e Alves não podia deixar de confessar que se na firma ele representava a boa conduta, a honestidade doméstica, a vida regular, a seriedade de costumes, Machado representava a finura comercial, a energia, a decisão, as largas idéias, o faro do negócio... Ele, Godofredo, fora sempre de natureza indolente, como seu pai, que, pôr gosto, se movia duma sala para outra, numa cadeira de rodas...» In Eça de Queirós, Alves e Companhia, 1925, Livraria Chardron, Editores, Lello e Irmão, Porto, Editorial Presença, 2003, Obras de Eça de Queirós, ISBN 978-972-233-101-2.

Cortesia de LChardron/EPresença/JDACT