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«Tivesse
sido o herói que toda a gente me julgava ou, pelo menos, um soldado razoavelmente
decente, Lee teria vencido a batalha de Getiysburg e, provavelmente, capturado Washington.
Isto é uma outra história, que contarei no seu lugar apropriado se o brandy e a
idade não me levarem primeiro, mas menciono aqui o facto porque mostra como os grandes
acontecimentos são decididos por insignificâncias. Os estudiosos, claro, não concordam.
São as políticas, dizem eles, e os esquemas subtilmente montados pelos
estadistas que influenciam os destinos das nações; as opiniões dos
intelectuais, os escritos dos filósofos, decidem o futuro da humanidade. Bem, esses
podem fazer a sua parte, mas, pela minha experiência, o curso da história é muitas
vezes determinado pelo facto de alguém ter uma dor de barriga ou não ter dormido
bem, ou de um marinheiro se ter embebedado, ou de uma aristocrática meretriz agitar
o traseiro.
Por isso,
quando eu digo que o facto de eu ter sido mal-educado para um certo estrangeiro
alterou o curso da história europeia, essa é uma declaração fundamentada. Se tivesse
sonhado, por um momento, como aquele homem viria a ser importante, ter-me-ia
mostrado tão delicado como o diabo, cheio de sins-meus-senhores e de palmadinhas
nas costas. Mas, na minha juventude e ignorância, eu imaginara que ele era daqueles
para quem podia ser grosseiro com impunidade, serviçais, prostitutas,
caixeiros-viajantes, lojistas e estrangeiros, e por isso deixei a minha língua desagradável
à rédea solta. A longo prazo isso quase me custou o meu pescoço, para além de ter
mudado o mapa do mundo. Estávamos em 42, quando eu mal passava dos vinte anos, mas
já era famoso. Tivera um papel notável no fiasco conhecido como Primeira Guerra
Afegã, emergira com os louros de um herói, fora condecorado pela rainha e tratado
como uma celebridade em Londres. O facto de ter passado a campanha num estado
de abjecto terror, mentindo, enganando, fazendo bluff e fugindo para salvar a pele
sempre que possível, não era do conhecimento de ninguém para além de mim mesmo.
Se uma ou duas pessoas suspeitavam, mantiveram-se em silêncio. Não teria sido
bem visto atirar lama ao valoroso Harry Flashman, naquela altura.
(Se leu
o primeiro pacote das minhas memórias, já saberá tudo isto. Menciono-o apenas para
o caso de os pacotes se terem separado, para que saiba imediatamente que esta é
a história verdadeira de um desonesto poltrão que se orgulha perversamente de ter
chegado a uma honrada e admirada idade, apesar dos seus muitos vícios e de uma completa
ausência de virtude, ou, possivelmente, por causa disso mesmo). Assim, ali estava
eu, em 1842, o grande, brusco e elegante Harry, amado pela sociedade londrina, admirado
na Cavalaria Real (embora fosse apenas capitão), possuidor de uma bela esposa,
aparentemente rico, visto na melhor companhia, abraçado pelas mamãs, respeitado
pelos homens como o perfeito beau sabreur. O mundo era a minha ostra, e, se não
era a minha espada que a abria, mais ninguém o ficaria a saber. Eram tempos
dourados, esses. O tempo ideal para se ser um herói é quando a batalha chega ao
fim, os camaradas estão mortos, Deus os tenha em paz, e somos nós que recebemos
o crédito.
Mesmo
o facto de Elspeth me estar a trair não fazia verdadeira diferença. Ninguém diria,
ao ver o seu rosto angelical, o cabelo dourado, a expressão de inocência
idiota, que ela era a maior vadia que alguma vez deu uso a um colchão. Mas eu tinha
a certeza, ainda não passara um mês do meu regresso, que ela andava pelo menos com
outros dois; ao princípio fiquei furioso e a conspirar vingança, mas era ela
que tinha a massa, por causa daquele velho saco de dinheiro escocês que tinha como
pai, e, se tivesse feito o papel do marido ultrajado, eu teria ido parar às ruas
da amargura, sem um tecto sequer, por cima da cabeça. Por isso, não disse nada e
paguei-lhe na mesma moeda, visitando prostitutas sempre que me apetecesse. Era uma
situação estranha; ambos sabíamos o que se passava (pelo menos, eu acho que ela
sabia, mas era tão tola que nunca se podia ter a certeza), mas fingíamos ser um
casal feliz. Ainda nos juntávamos na cama de vez em quando, e gostávamos.
Mas a
vida real era gozada por fora; sociedade respeitável à parte, eu andava metido com
os bandos de foliões, e preguiçava, jogava, bebia e vadiava pela cidade. Era o
final dos grandes tempos dos espadachins; tínhamos uma rainha no trono e a sua fria
mão branca e o hirto do marido estavam já a estabelecer o seu poderio sobre a vida
da nação, a abafar os velhos hábitos dissolutos com a sua hipocrisia piedosa.
Estávamos a entrar naquilo a que se chama agora a Época Vitoriana, quando a respeitabilidade
era a regra; desapareceram os calções e vieram as calças; os seios eram
cobertos e os olhos baixavam-se com modéstia; os políticos tornavam-se mais
sóbrios e o comércio e a indústria ficavam na moda, o odor da santidade
substituía os felizes vapores do brandy, a era do jogador e do dândi dava lugar
à era do pedante, do pregador e do aborrecimento». In George M. Fraser, Royal Flash,
A Odisseia de um Cobarde, 1970, tradução de Ester Cortegano, Saída de
Emergência, 2010, ISBN 978-989-637-277-4.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT