terça-feira, 24 de maio de 2016

O Leão Escarlate. Elizabeth Chadwick. «Isabelle mordeu o lábio e debateu-se para não fazer força com o ímpeto que os seus instintos lhe ditavam. Pegando nos tornozelos do bebé, puxando com cuidado…»

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Fortaleza de Longueville. Normandia. Primavera de 1197
«Isabelle de Clare, condessa de Leinster e Striguil, esposa do assessor do rei Ricardo, dava à luz o seu quarto filho. Vai nascer de rabo, anunciou a parteira, limpando as mãos a uma toalha depois de examinar a sua paciente. Deve ser um rapaz, são sempre eles que dão mais problemas. Isabelle fechou os olhos e reclinou-se nos travesseiros empilhados. Durante a manhã, as contracções haviam-se tornado cada vez mais frequentes e dolorosas. As suas damas de companhia tinham-lhe desfeito as tranças do cabelo, para que não existissem nenhumas amarras em seu redor que pudessem prender o bebé ao útero, e as espessas madeixas douradas como o trigo espalhavam-se sobre os ombros e seios inchados e tocavam-lhe na barriga arredondada. Ele já estava atrasado. O seu marido esperara acolher o seu novo rebento antes de partir para a guerra dez dias antes, mas, ao invés, tivera de se despedir de Isabelle com um beijo à distância, já que a sua barriga grávida parecia uma montanha a separá-los. Estava-se agora em Maio. Se ela sobrevivesse à gravidez desta criança e ele conseguisse ultrapassar a campanha de Verão, ver-se-iam no Outono. Por agora, ele estava algures no seio de Beauvaisis com o seu soberano, e ela desejava estar em todos os lugares menos nestes aposentos atravancados a passar pela provação do parto.
Uma contracção teve início no fundo da coluna e apertou-lhe o útero. A dor apoderou-se da parte de baixo do seu corpo, fazendo-a ofegar e cerrar os punhos. Dói sempre mais quando eles vêm de rabo. A parteira olhou astutamente para Isabelle. Não é o seu primeiro; sabe o que a espera, mas as crianças que chegam ao mundo pela parte de trás têm uma passagem perigosa. A cabeça vem em ultimo lugar, e isso não é bom para o bebé. E melhor rezar à abençoada santa Margarida para pedir ajuda. Fez sinal para a imagem de madeira pintada colocada sobre uma arca ao lado da cama, rodeada por um brilho de velas votivas. Tenho-lhe rezado todos os dias, desde que soube que estava de bebé, disse Isabelle de forma irritadiça, sem acrescentar que o parto atrasado de um bebé a nascer de rabo dificilmente seria uma feliz recompensa para a sua devoção. Estava quase a sentir aversão à imagem. Quem quer que a tivesse esculpido tinha-lhe colocado uma expressão santimonial muito semelhante a um sorriso arrogante. A contracção que se seguiu fê-la contorcer-se e ter vontade de fazer força. A parteira fez sinal à rapariga que a auxiliava e ocupou-se do interior das coxas de Isabelle. Devia convocar o seu capelão para baptizar a criança imediatamente, anunciou ela, com a voz abafada pelo lençol levantado. Já tem nome?
Gilbert, se for menino, e Isabelle, se for menina, disse Isabelle, por entre dentes cerrados, enquanto fazia força. A contracção desvaneceu-se. Deixando-se cair nos travesseiros, pediu, ofegante, a uma das damas de companhia que fosse buscar o padre Walter e lhe pedisse para esperar na antecâmara. Mais uma dor se apoderou dela, depois outra e mais outra, violenta e severa, agora sem intervalos, enquanto o seu corpo se esforçava por expelir o bebé do seu útero e fazê-lo entrar no mundo. Arquejante, chorou e gemeu com estorço, com os tendões a sobressaírem-lhe na garganta, as mãos agarradas às das suas companheiras com força suficiente para lhes deixar marcas permanentes na pele. Houve um súbito jorro de calor húmido por entre as suas coxas e a parteira começou às apalpadelas. Ah, disse ela, com satisfação. Eu tinha razão, é mesmo um rapaz. Ora, e tem um belo par de tintins! Vamos lá ver se conseguimos mantê-lo vivo para lhes dar uso, hã? Faça força novamente, minha senhora. Mais devagar, mais devagar. Com calma, agora.
Isabelle mordeu o lábio e debateu-se para não fazer força com o ímpeto que os seus instintos lhe ditavam. Pegando nos tornozelos do bebé, puxando com cuidado, a parteira levantou-lhe o tronco por cima do abdómen de Isabelle. Quando a boca e o nariz emergiram do canal do parto, ela limpou-lhes o sangue e o muco e, depois, observando atentamente, controlou a saída do resto da cabeça com uma mão meiga. Apoiada sobre os cotovelos, Isabelle fitou o bebé deitado sobre o seu corpo como um marinheiro afogado, naufragado. Tinha uma cor cinzenta-azulada e não se mexia. O pânico apoderou-se dela. Sagrada Santa Margarida, ele está... ? A mulher levantou o bebé pelos tornozelos, balançou-o suavemente e deu-lhe uma palmada vigorosa nas nádegas, depois mais outra. Um tremor percorreu-o, o seu peito pequenino expandiu-se e um choro de protesto encheu o ar, inseguro ao início, mas ganhando força e infundindo-lhe no corpo um vitalizante rubor rosado.
Endireitando-o, a parteira virou-se para Isabelle, com um sorriso a vincar-lhe as pregas das bochechas enrugadas. Só precisava de um bocadinho de persuasão, disse ela. Mas é melhor que o padre lhe dê um nome, pelo sim, pelo não. Embrulhou-o numa toalha quentinha e colocou-o nos braços de Isabelle. Depois de cortado o cordão umbilical e de expelida a placenta para ser levada para enterrar, Isabelle contemplou os traços enrugados pelo parto do seu filho recém-nascido e, ainda profundamente ansiosa, observou a sua respiração fraca. Um desconcertado e ligeiramente intrigado franzir de sobrolho enrugou-lhe as sobrancelhas delicadamente desenhadas. As suas pequeninas mãos estavam cerradas com força, como se fossem combater o mundo no qual fora tão brutalmente iniciado. Gilbert, disse ela, suavemente. O que será que o teu pai irá fazer de ti? Soprou-lhe suavemente para a bochecha e deu-lhe o dedo indicador, para que ele enrolasse à sua volta a mão em miniatura. Passado um momento, ela desviou o olhar do bebé e fixou-o na janela dos seus aposentos e no arco de suave céu azul que ela emoldurava. A sua própria provação estava quase terminada e, se Deus quisesse, se ela não apanhasse a febre puerperal, em breve estaria a pé. Poderia agradecer a Santa Margarida com uma oferenda e voltar a guardá-la na sua arca, até que fosse necessária. Agora iria concentrar-se em orações pela segurança do seu marido e pedir a Deus que o trouxesse de volta a casa inteiro, para conhecer o seu novo filho». In Elizabeth Chadwick, O Leão Escarlate, 2006, Edições Chá das Cinco, 2009, ISBN 978-989-803-247-8.

Cortesia de ECdasCinco/JDACT