sexta-feira, 13 de maio de 2016

Memórias de Agripina. Seomara V. Ferreira. «Até aí eu errei. Agrippina Augusta Mater Augusti. Cometi erros tremendos na minha vida. Bem sei que não foram menores nem maiores que os de Augusto, César, Lívia, Tibério...»

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«Bauli. A noite é serena e o céu de opala e cristal cobre a terra onde Minerva foi honrada com o seu suave manto de estrelas. O mar ao longe… O mar. É estranho. O mar sempre me perseguiu, como uma ordem impiedosa do destino. A recordação do mar e a força desse oceano estelar e profundo, onde habitam os deuses, por onde vagueiam os mundos e onde é inscrito a fogo o nosso passado e o nosso futuro. Fastigium Tuum Affixum Est Fastigium. Como costumava dizer, com o seu sorriso hipócrita, Séneca, o moralista sonso de Roma. Pela Eternidade. O meu destino termina aqui. Poucas horas. Não verei mais, por sobre a varanda de arcaria da minha bela villa branca, coroada de rosas, em Antium, o Sol erguer-se na sua silenciosa curva majestosa e colorir de beijos e de sangue as flores e as vestes das mulheres. O próprio som da minha voz me parece distante, esta voz ora cristalina ora levemente enrouquecida, ora fria e cortante como o ferro, ora branda como o leite e o mel. Que insidiosa melopeia é esta que sobe da praia, paradoxalmente longínqua e envolvente? As escravas entoam já um cântico de morte? Não são as escravas. Elas partiram. Todos me abandonaram, menos esta rapariga pálida e assustada cujo perfil discreto a luz trémula da lâmpada de bronze recorta no estuque pintado a ocre na parede do meu quarto. Mas ela, no momento supremo, partirá também. Fastigium Tuum... O teu destino está marcado e ninguém te poderá apartar dele. Nem os deuses. Ah! os deuses... Os deuses, esses estarão algures, na planície sombria de mil sombras desfeitas na angustiada sombra do nosso desejo. Eles desconhecem-nos. Como eu os desconheci. É justo. Todos os actos da minha vida os cumpri à margem dos deuses e agora que a minha morte se avizinha e a espero deitada no leito, no abandono quase inocente da minha nudez, vencida pelo cansaço e pela angústia única de um frio desânimo, uma grande paz se apoderou de mim e eu comecei a duvidar. Melhor, a minha dúvida é uma certeza tão definitiva como a morte. A noite vai encerrar no seu estojo de luz difusa e ouro as festas de Minerva. Foram dois dias em Baies de festejos, de risos. As crianças, que são os seres mais sensatos do mundo, celebraram o nascimento da deusa 14 dias antes das Calendas de Abril. E com elas os artífices, os médicos, os estudantes, os artistas que calcorreiam as nossas vias eternas e as nossas cidades e enxameiam os caminhos para prestar homenagem à protectora das Artes e das Ciências. Depois será o dia do último sacrifício. O último dia dos cinco de Minerva, depois de quatro dias de alegria, onde o culto à deusa se identifica com a diversão da feira, a comunicabilidade aparentemente insultuosa do mercado, o riso fácil dos pequenos artesãos, dos camponeses e das mulheres da rua. No entanto, nada disto é vexatório ou ultrajante. Há muito da pureza dos velhos cultos agrários, que recuam a milhares de anos, nestas nossas festas às divindades do Império. Meu pai, (como referia minha mãe) com a sua sabedoria que o seu belo sorriso tornava natural como uma observação trivial de criança, falava muitas vezes, ao serão, durante os longos Invernos da Germânia, da necessidade de regressar à majestade olímpica e serena dos velhos deuses como se o Império necessitasse de uma catarse salvadora, enquanto no braseiro no centro do aposento a luz alaranjada dos carvões incandescentes, de mistura com a ténue mortalha de cinza que se erguia a cada movimento dos corpos, desenhava nos rostos mil figuras misteriosas que se iam dissolver na penumbra das paredes, no forro acariciador das peles e no clarão azul das armas tocadas ao de leve pelo lume das lâmpadas e penduradas nas traves pelas suas correias de couro polido. Meu pai deu-me a primeira grande lição de história: os bons morrem cedo e a moral e o heroísmo compensam muito pouco. Volto aos deuses e na posse consciente de minha dúvida que não terei tempo nem de justificar nem de corrigir creio que eles de facto estarão sempre ao nosso lado, mas sem que um gesto nosso os perturbe ou comova. Meu pai era sábio e Minerva não o salvou. Minha mãe foi a matrona mais casta e honesta que alguma vez Roma gerou. Morreu miseravelmente, cega, violentada, ultrajada à míngua de tudo na sua ilha deserta como uma fera abandonada por todos. Cheia da velha dignidade romana, bem filha de Agripa e neta de Augusto, a impoluta mulher de Germânico nem sequer viu ao longe o desfile silencioso dos velhos deuses e, se eles passaram, o seu olhar gélido e cego não a tocou. Ela acabou como um verme que se esmaga sem que a brisa do mar trouxesse ao seu regaço nem sequer o simulacro do sopro divino para lhe suavizar a malignidade implacável do derradeiro momento. Como hoje sucede comigo, mas a grande diferença é que a neta de Agripa nada tem a ver com a neta de Augusto a não ser o resíduo quase intemporal dessa nobreza romana, desse orgulho que a velha Roma deixou no meu sangue e que eu, de todos os nove filhos que meus pais geraram, fui a única a herdar mas que, para grande tragédia minha e do Império, Lúcio Domício não herdou de mim. Como é um erro profundo o amor! Amor é uma palavra que envolve tudo e traduz apenas ao longo de uma vida inteira a mais estranha forma de angústia que um espírito pode experimentar. A angústia da morte que eu sinto neste preciso momento não é nada comparada com essa agonia indefinida e pungente. Sempre duvidei do amor mas pensei que ser mãe me traria uma parcela da sabedoria divina. Até aí eu errei. Agrippina Augusta Mater Augusti. Cometi erros tremendos na minha vida. Bem sei que não foram menores nem maiores que os de Augusto, César, Lívia, Tibério... Mesmo os do meu irmão Caio podem ter desculpa porque ele era louco. Se o preço desses erros é a morte, então os deuses erraram tanto como eu. Em termos de Estado e do Império há seres predestinados ao poder e há os que serão inevitavelmente condenados ao patíbulo. A vida é assim. Não a podemos modificar». In Seomara Veiga Ferreira, Memórias de Agripina, 1993, Editorial Presença, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-231-664-4. 
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