segunda-feira, 16 de maio de 2016

Domitila. Paulo Rezzutti. «Ela foi a mulher escolhida para ser amada pelo imperador, ao contrário de dona Leopoldina, a esposa imposta. Sentimentos nascidos da afeição versus interesses de estado sacramentados pela Igreja: “amor versus Roma”»

jdact e wikipedia

Marquesa dos Santos ou dos Demónios
«(…) Ao contrário dos primeiros paulistas, que se aventuravam pelo sertão atrás de riquezas ou defendendo as fronteiras do império lusitano, os homens de meados do século XIX fixaram-se na terra, vivendo entre a capital e as fazendas, para onde podiam levar as famílias. Assim, a mulher paulista do período colonial, que tinha de se virar sozinha sem a presença do companheiro, passava a contar com a figura masculina mais presente. Essa mudança levou as paulistas da sociedade a se readequarem ao padrão estabelecido para as mulheres de sua época, que não deveriam chamar atenção sobre si. Os seus trabalhos restringiam-se ao âmbito familiar e beneficente. Não por acaso, o mito criado ao redor da marquesa em São Paulo tenta impingir-lhe, devido à dimensão da sua figura, benemerências maiores do que realmente praticou. Entretanto, a aura de boa samaritana entra em contraste com o que a família paulista tradicional considerava adequado na época. Damas que se destacassem nesses afazeres a ponto de terem a atenção pública voltada para si não eram modelos a ser seguidos, afinal, como dizem as escrituras, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita: lendo, porém, nos jornais os nomes de várias senhoras que se dedicavam a tal mister [preparar bandagens para os soldados feridos na Guerra do Paraguai], acompanhados de grandes elogios, o comendador fez cessar esse trabalho em sua casa, avesso como era aos aplausos e a toda a espécie de publicidade. O que as famílias paulistas da época teriam pensado da idosa marquesa, que, usando a condecoração de Santa Isabel, distribuiu publicamente dinheiro aos soldados que partiam para a Guerra do Paraguai em 1865, pouco tem a ver com a ideia de benemerência que os seus conterrâneos actualmente lhe conferem. E, talvez, independente como era, Domitila não se importaria com nenhum dos dois.
Alguns paulistas, quando o título dela é pronunciado, tomam a peito a sua defesa. Logo surge alguém que a chame de santa. Afirmam erroneamente que ela doou terras para a construção do cemitério da Consolação e que trouxe a primeira faculdade para São Paulo. Ao mesmo tempo em que tratam de coroar a idosa marquesa com folhas de louro, puxam as cortinas para cobrir a face jovem e atrevida do seu retrato. Parecem querer ignorar o passado anterior ao seu retorno à Pauliceia. Não lhes agradam as cartas dos amantes de São Cristóvão, só a força da mulher paulista. Os cariocas, por outro lado, não raro tratam-na de alpinista social. Em São Paulo, onde se iniciou o romance com o imperador Pedro, e no Rio de Janeiro, onde ele se desenvolveu, existem distinções a respeito da figura de Domitila.
Enquanto na Pauliceia a marquesa desponta como santa, matrona, ou ainda a desviada que se tornou honesta, a maioria dos cariocas vê nela a manipuladora, a mulher que se aproveitou de Pedro para enriquecer, a responsável pela morte da imperatriz dona Leopoldina e pela queda do próprio Primeiro Reinado. Para quase todos os brasileiros, principalmente os de fora do cenário desse caso amoroso, a imagem de Domitila é a da amante de Pedro I, a que tomou banho nua com ele no morro de São Paulo, na Bahia. A marquesa não tem muito passado e nem futuro após sua expulsão da corte. Essa figura é a mesma utilizada pelo escritor Paulo Setúbal no seu romance A marquesa de Santos: só importa o escândalo, num primeiro momento. Com o tempo, para um grupo de pessoas, a imagem de Domitila amalgamou-se ao ideal do amor romântico, passando a representar no imaginário popular do brasileiro o mesmo que outros amores impossíveis, como os de Tristão e Isolda, Paola e Francesca da Rimini, Abelardo e Heloísa. Ela foi a mulher escolhida para ser amada pelo imperador, ao contrário de dona Leopoldina, a esposa imposta. Sentimentos nascidos da afeição versus interesses de estado sacramentados pela Igreja: amor versus Roma.
Quando, pelas convenções, o imperador Pedro foi obrigado a casar-se novamente, listou todas as qualidades que a noiva deveria ter, como uma espécie de prémio de consolação por não poder ter a mulher que amava. É essa a imagem que vem à mente para grande parte dos brasileiros: o amor sem um final feliz, comprometido por razões sociais e políticas. Claro que isso é para os românticos. Outros culpam Domitila pela corrupção e pelo início dos cabides de emprego do funcionalismo estatal. Diante do Solar da Marquesa de Santos, reinaugurado pela prefeitura de São Paulo em Novembro de 2011, uma mulher impediu o seu companheiro de entrar para conhecer o museu. Imagine, entrar na casa de uma mulher que foi amante! A marquesa sofre preconceito até nos dias de hoje. As pessoas que conseguem ver além do estereótipo vislumbram as diversas facetas de uma mulher forte, corajosa e decidida a tomar o destino nas próprias mãos, em vez de se deixar dominar. Quem foi realmente essa mulher que, quase duzentos anos depois do início de seu relacionamento com o imperador Pedro, ainda é capaz de dividir o Brasil em marquesistas e antimarquesitas? É o que convido o leitor a descobrir comigo». In Paulo M. Rezzutti, Domitila, 2012, Geração Editorial, São Paulo, 2013, ISBN 978-853-940-089-4.

Cortesia de GeraçãoE/JDACT