sábado, 28 de maio de 2016

As Benevolentes. II Guerra Mundial. Jonathan Littell. «Ora se suspendermos o trabalho, as actividades banais, a agitação de todos os dias, para nos entregarmos seriamente a um pensamento, as coisas passam a ser completamente outras»

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Toccata
«(…) A verdade é que nos estamos nas tintas para a última crise ministerial, mas de que mais havemos de falar? Eliminem-se os pensamentos do mesmo género, e toda a gente terá de reconhecer como eu que não resta muita coisa. Há, bem entendido, momentos diferentes. Inesperado entre dois anúncios de detergente, um tango de antes da guerra, digamos que a Violetta, e eis que ressurgem o murmurar nocturno do rio, as lanternas do bar, o leve cheiro a suor na pele de uma mulher alegre; à entrada de um parque, o rosto sorridente de uma criança traz-nos de regresso o do nosso filho, justamente pouco antes da altura em que começou a andar; na rua, um raio de sol trespassa as nuvens e ilumina as grandes folhas, o tronco alvacento de um plátano: e pensamos bruscamente na nossa infância, no pátio de recreio da escola onde brincávamos à guerra uivando de terror e de felicidade. Acabamos de ter um pensamento humano. Mas é muito raro.
Ora se suspendermos o trabalho, as actividades banais, a agitação de todos os dias, para nos entregarmos seriamente a um pensamento, as coisas passam a ser completamente outras. Depressa as coisas começam a vir à tona, em vagas densas e negras. À noite, os sonhos desarticulam-se, desdobram-se, proliferam, e ao despertar deixam uma fina camada acre e húmida na cabeça, que leva muito tempo a dissolver-se. Nada de mal-entendidos: não é de culpabilidade, de remorsos que aqui se trata. Isso existe também, sem dúvida, não quero negá-lo, mas penso que as coisas são muito mais complexas. Até mesmo um homem que não fez a guerra, que não teve de matar, sofrerá aquilo de que estou a falar. Regressam as pequenas maldades, a cobardia, a falsidade, os gestos mesquinhos que afligem todo e qualquer homem. Não é de admirar por isso que os homens tenham inventado o trabalho, o álcool, as conversas fiadas estéreis. Não é de admirar que a televisão tenha tanto sucesso. Em suma, em breve pus fim ao meu período de licença inoportuno, mais valia assim. Tinha tempo suficiente com efeito, à hora de almoço ou ao fim da tarde depois de as secretárias saírem, para me pôr a garatujar.
Uma breve pausa para ir vomitar, e recomeço. É mais outra das minhas numerosas pequenas aflições: de vez em quando, as minhas refeições voltam a vir-me à boca, por vezes logo a seguir a tomá-las, por vezes mais tarde, sem razão, assim sem mais. É um velho problema, uma coisa que data da guerra, que começou no Outono de 1941 para ser mais preciso, na Ucrânia, em Kiev penso eu, ou talvez em Jitomir. Também disso hei-de falar sem dúvida. Seja como for, desde então habituei-me: escovo os dentes, engulo um pequeno copo de álcool, e continuo o que estava a fazer. Voltemos às minhas recordações. Comprei vários cadernos escolares, de grande formato mas de quadriculado pequeno, que guardo na minha secretária dentro de uma gaveta fechada à chave. Antes, rabiscava notas em fichas de papel brístol, também com uma quadrícula miúda; agora, decidi retomar tudo isso de uma assentada. Para quê, não sei lá muito bem. Decerto que não para edificar a minha descendência. Se neste mesmo instante eu sucumbisse subitamente, de uma crise cardíaca, digamos, ou de uma embolia cerebral, e as minhas secretárias pegassem na chave e abrissem esta gaveta, teriam um choque, as pobres, e o mesmo se diga da minha mulher: as fichas em papel brístol serão largamente suficientes. Vai ser dentro em breve necessário queimar tudo isto para evitar o escândalo. Quanto a mim, tanto me faz, estarei morto. E bem vistas as coisas, ainda que me dirija aos que me lêem, não é para eles que escrevo.
O meu gabinete é um sítio agradável para se escrever, grande, sóbrio, tranquilo. Paredes brancas, quase sem decoração, um móvel de vitrina para as amostras; e ao fundo uma grande parede envidraçada que dá sobre a casa das máquinas. Mesmo com vidros duplos, o estalido incessante dos teares Leavers enche a sala. Quando quero pensar, deixo a minha mesa de trabalho e vou pôr-me diante do vidro, contemplo os teares alinhados aos meus pés, os movimentos seguros e precisos dos tecelões, deixo-me embalar. Por vezes, desço para deambular entre as máquinas. A sala é escura, os vidros sujos estão pintados de azul, porque a renda é frágil, tem medo da luz, e essa claridade azulada repousa-me o espírito. Gosto de me perder um tanto no bater monótono e sincopado que domina o espaço, esse compasso metálico a dois tempos, obsidiante. Os teares continuam a impressionar-me. São de ferro fundido, pintaram-nos de verde, e cada um deles pesa dez toneladas. Alguns são muito velhos, deixaram de ser produzidos há muito tempo; as peças para reparação, mando-as fazer de encomenda; é certo que passámos, a seguir à guerra, do vapor à electricidade, mas quanto às próprias máquinas não lhes tocámos. Não me aproximo delas para evitar sujar-me: as suas muitas peças móveis têm de ser constantemente lubrificadas, mas o óleo, evidentemente, arruinaria as rendas, por isso recorre-se à grafite, uma mina de chumbo triturada com que o tecelão salpica os órgãos em movimento com o auxílio de uma meia, manejada como um turíbulo. A renda fica negra de grafite, e esta cobre as paredes, e do mesmo modo o chão, as máquinas e os homens que as vigiam. Ainda que não lhes toque muitas vezes, conheço bem estes grandes aparelhos mecânicos». In Jonathan Littell, As Benevolentes, 2006, Publicações Dom Quixote, 2014, Alfragide, ISBN 978-972-20-3304-6.

Cortesia PdomQuixote/JDACT