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O
pulsar lento da vida
«Levanta-se
do rio um nevoeiro denso. Devagar encobre barcos, campos, o paço real de
Enxobregas, nesta tarde de Outubro de 1577. Dona Guiomar confessa-me o temor de
alguém se apoderar dos escritos a mando da rainha avó. Ofereço-me para os
guardar até aos funerais e no melhor momento ela mesma poderá colocá-los junto
ao corpo de Sua Senhoria. Tudo na presença de muito povo, para que ninguém se
atreva a desviar uma folha. Percebendo-me as fundas olheiras, o meu desamparo no
limiar da porta, diz-me para ficar uns minutos em privado a fazer as minhas
orações. Insiste que Sua Senhoria o teria desejado. É um raro, finito
privilégio que aceito, em silêncio, sem ninguém por testemunha. E ali me
entrego à minha desolação, choro o abandono a que nos vota esta morte. Na
verdade estive sempre perto dela, esgueirando-me pelos cantos quando não era
oportuno. Tolerado em outras ocasiões, assumia a presença despertando
simpatias, ouvindo melhor as conversas importantes que as damas também
partilhavam. Fazia parte da bagagem da Senhora Infanta nas deslocações que
fazíamos, por isso ninguém estranhava que rondasse. Menos real, porém, do que
muitos desejariam, era o meu fingimento. Quase invisível sob o colorido
gritante das roupas e adereços, podia ser votado à indiferença como qualquer
pobre lacaio, mas sabia usar o sorriso à medida das circunstâncias, mais ainda
quando meandros suspeitos o pediam. Não alcançava a parca inteligência da
maioria que, entre as gargalhadas, registava até os planos das cenas
aparentemente insignificantes. Intervinha com uma graça, mais forçada do que
natural, de modo a desanuviar os momentos mais densos, e depois fazia a montagem
dos retalhos para apresentar a Sua Senhoria.
Ela
gabava-me a inteligência, a capacidade de apurar o que estava no fundo das
coisas. Ao cair da tarde trazia-lhe fielmente o relatório oral, enquanto os
seus olhos seguiam as tarefas das mãos ou as linhas de um novo livro, até que
decidia da importância do que eu lhe contava, não raras vezes com um sorriso
doce de mudo agradecimento por saber-se protegida. Foi a minha dedicação que
lhe valeu, me valeu, a salvação de pior destino, pelo menos uma vez. Nem
calculava levar tão longe a coragem, apesar de me ensinarem a brandir uma
espada, quando ainda mal a segurava... Só diante da morte um bobo se eleva,
estatura física e moral inteiras, por momentos. No resto a vida é tão
passageira que nem reparamos que passa, absortos a tentar recuperar folhas
mortas, a reanimar indecisões. E a centelha de luz a acenar-nos, repetidamente,
até se cansar do alheamento. Lá fora a ramagem ondula num adeus suave, mitigado
pela aragem providencial que me garante há de permanecer perto de ti... Sua Senhoria
não está, para me proteger, repito-me entre sopros de vozes distantes É um
tesouro que vos confio, Alteza... protegei-o sempre… Mas quem, com igual pureza
de sentimentos, poderia eu servir, depois dela?
Ninguém
me daria igual protecção, jamais me permitiriam tamanha liberdade. Nem eu
saberia retirar do ânimo que me vai falecendo, o bastante para viver entre
fortes emoções. Só tive desejo de cumprir a sua vontade, só tenho ouvidos para
uma voz, a sua, gravada na minha alma: deveis guardar o que sentis, só revelar
o que podeis… Respiro restos da terra mãe e seus oragos neste dia alheio ao desgosto
que alastra no meu peito. Gritos antigos, estrangulados pelo esforço da
sobrevivência, chegam aqui perfeitamente inteligíveis, enquanto desenrolo o
pergaminho dos anos em retalhos da vida minha, às vezes composta com as
histórias dos outros, nem por isso menos minhas. Dona Guiomar foi chamar os
representantes de Sua Alteza, comodamente instalados no salão de recepções, à
espera da notícia de mais uma morte, em tão pouco tempo. Em breve os mesmos
rituais sem autenticidade, para a maior parte dos nobres um ensejo para mostrar
seus trajes novos. Quando me aproximo do leito e vou para levantar o lencinho
de renda do rosto da Senhora Infanta, desperta-me a curiosidade a ponta de um
caderno pequenino sob o seu corpo ainda morno. Sem pensar duas vezes faço
menção de o abrir, nunca com intenção de vasculhar o que diz, só para confirmar
se foi escrito por ela. É a sua caligrafia, disso tenho a certeza, porém
disposta de uma forma estranha, com as letras deitadas ao contrário, um código
com o que parecem ser íntimas anotações que nesta hora não me esforço por
desvendar.
Algum
registo importante tem de ser, para o ter escondido Sua Senhoria, destinado a
ser lido só por alguém de confiança, alguém como dona Guiomar. Então porque não
terá ela recuperado o caderno mal a viu fechar os olhos? Se soubesse da sua
existência não havia de o esquecer, não sabendo que existe é porque não quis
Sua Senhoria dar conta dele a ninguém. Fico mais confuso para agir sem peso na
consciência, se acaso resolver abri-lo. O que devo fazer para respeitar a sua
vontade? Heresia ou atrevimento, guardo-o entre o meu peito e a roupa, a olhar
em todas as direcções, a tremer de ansiedade por ter achado outro tesouro. Sobressalta-me
o ruído de passos na direcção do aposento, cada vez mais nítidos...» In
Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, Saída de Emergência, 2006, ISBN
978-972-883-940-6.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT