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O
Verão de 1899
«(…)
Então, certo ano, e sem qualquer aviso, dez mil soldados gregos mataram o seu
patrono persa, fizeram os seus oficiais prisioneiros e marcharam da cidade que
hoje se chama Bagdad para a Anatólia. Nada lhes fez frente. Perante isto, o
povo não demorou muito a compreender que, se apenas dez mil soldados podiam fazer
uma coisa destas, então, os chefes e os governantes eram desnecessários... Yusuf
Pasha ainda não concluíra a sua história, mas a expressão que cobriu o rosto do
sultão bastou para interromper o seu discurso. Calou-se e não se atreveu a fitar
de frente aquele que era o seu senhor. Quanto ao sultão, deixara-se dominar pela
raiva, levantara-se e saíra da sala de rompante. Yusuf Pasha receou o pior. Tudo
o que ele tinha em mente era alertar o amigo da juventude para os perigos da
indolência e da sensualidade, bem como da influência sufocante dos eunucos.
Quisera recordar ao amo a lei eterna, a qual ensina que tudo é temporário. Em
vez disso, o sultão escolhera interpretar a história como uma referência de mau
agouro em relação à dinastia otomana. Em relação a si mesmo. Qualquer outra pessoa
teria sido executada, mas é provável que tenham sido as mesmas recordações de
infância a fazer com que a misericórdia acabasse por levar a melhor. Yusuf Pasha
recebeu um castigo bastante ligeiro. Foi exilado de Istambul. Para sempre. O sultão
não desejava viver na mesma cidade que ele. E foi assim que ele aqui veio parar
com a família, a este lugar selvagem e isolado, rodeado de rochas antigas, e decidiu
que seria aqui que construiria o seu palácio no exílio. Sentia muito a falta de
velha cidade, mas nunca mais voltou a ver o Bósforo.
Consta
que também o sultão sentiu a falta da sua companhia, sendo muitas as vezes em que
desejou a sua presença. Porém, os cortesãos, que sempre haviam invejado a influência
exercida por Yusuf Pasha, arranjaram maneira de fazer com que os dois amigos jamais
se voltassem a encontrar. É tudo. Estais satisfeita, minha pombinha? E vós,
Orhan, sereis capaz de recordar aquilo que eu disse de um dia o repetir aos
vossos filhos, quando eu já não me encontrar entre vós? Orhan sorriu e fez que sim
com a cabeça. Quanto a mim, mantive um rosto inexpressivo. Sabia que o meu pai se
limitara a contar meias verdades. Tinha escutado outras histórias sobre Yusuf Pasha
contadas por tias e tios pertencentes ao outro ramo da família, descendentes de
um tio-avô a quem o meu pai detestava e cujos filhos nunca haviam sido autorizados
a visitar-nos, quer aqui quer em Istambul.
Todos
eles haviam contado histórias bastante mais excitantes, bastante mais reais e infinitamente
mais convincentes. Contavam como Yusuf Pasha se apaixonara pelo escravo branco
que era o favorito do sultão e de como ambos tinham sido descobertos quando
copulavam. O escravo fora executado no mesmo instante e os seus órgãos genitais
atirados aos cães que se reuniam no exterior da cozinha real. Segundo esta versão,
Yusuf Pasha fora açoitado em público, sendo depois banido da corte para viver em
desgraça durante o resto da vida. No entanto, talvez a versão do meu pai também
correspondesse à verdade. Talvez não existisse uma só narrativa capaz de explicar
o facto de o nosso antepassado ter caído em desgraça. Ou talvez ninguém soubesse
qual o verdadeiro motivo, daí que todas as versões existentes fossem falsas. Talvez.
Não
tinha qualquer vontade de ofender o meu pai depois de um tão longo afastamento,
daí que me refreasse e não o continuasse a interrogar. Perturbara-o profundamente
há muitos anos atrás, quando me apaixonara por um mestre-escola que ali se encontrava
de passagem, fugira com ele, tornara-me sua mulher e mãe dos seus filhos e apreciara
a poesia que ele fazia, poesia esta que agora me parece bastante má, mas que,
na época, me parecia muito bela. Infelizmente, a poesia fora sempre a verdadeira
profissão de Dmitri, mas o certo é que ele tinha de ganhar a vida. Fora por isso
que começara a leccionar. Era a forma por meio da qual conseguia ganhar algum dinheiro
e cuidar da mãe. o pai dele morrera na Bósnia a combater pelo nosso Império. Fora
o tom suave da sua voz enquanto recitava os poemas por si compostos que
começara por me tocar o coração.
Tudo
isto teve lugar em Konya, onde eu me encontrava a passar um tempo com a família
da minha melhor amiga. Fora ela quem me dera a conhecer as maravilhas de Konya.
Tínhamos visitado os túmulos dos velhos reis seljúcidas e espreitado para dento
das casas pertencentes às comunidades sufis. Foi aqui que me encontrei com Dmitri
pela primeira vez. Na época, eu tinha dezassete anos e ele quase trinta. Eu queria
escapar à atmosfera asfixiante que se vivia em minha casa. Dmitri e a sua
poesia surgiram a meus olhos como a estrada para a felicidade. Fui feliz durante
algum tempo, mas nunca o bastante a ponto de obscurecer a dor que sentia por haver
sido banida daquela que era a casa da minha família. Sentia a falta da minha mãe,
e não demorei muito a sentir saudades do conforto característico da nossa casa.
Acima de tudo, sentia a falta dos verões que passávamos aqui, nesta casa com vista
para o mar. Claro que eu quisera sair de casa, mas sempre de acordo com os termos
por mim estabelecidos. O édito emitido pelo meu pai declarando-me uma marginal constituíra
um golpe deveras rude para mim. Na época, odiava-o. Odiava a sua mentalidade limitada.
Odiava o modo como ele tratava os meus irmãos, sobretudo Halil, que, qual garanhão
rebelde, se recusava a ser disciplinado. Por vezes, o meu pai chicoteava-o em frente
de toda a família. Eram estas coisas que me faziam odiar tanto o meu pai. Contudo,
a vontade de Halil permanecia inquebrantável. O meu pai considerava-o um anarquista
preguiçoso e incapaz de sentir qualquer forma de respeito, daí que se tenha mostrado
verdadeiramente surpreendido quando Halil se alistou no Exército, e, graças à história
da nossa família, não demorou muito a ser promovido e a assumir o desempenho de
deveres a realizar no palácio». In Tariq Ali, A Mulher de Pedra, 2000,
tradução de Lucília Rodrigues, Publicações Europa América, Contemporânea,
2002/2003, ISBN 972-105-125-X.
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