domingo, 29 de maio de 2016

A Mulher de Pedra. Tariq Ali. «Tinha escutado outras histórias sobre Yusuf Pasha contadas por tias e tios pertencentes ao outro ramo da família, descendentes de um tio-avô a quem o meu pai detestava e cujos filhos nunca haviam sido autorizados a visitar-nos»

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O Verão de 1899
«(…) Então, certo ano, e sem qualquer aviso, dez mil soldados gregos mataram o seu patrono persa, fizeram os seus oficiais prisioneiros e marcharam da cidade que hoje se chama Bagdad para a Anatólia. Nada lhes fez frente. Perante isto, o povo não demorou muito a compreender que, se apenas dez mil soldados podiam fazer uma coisa destas, então, os chefes e os governantes eram desnecessários... Yusuf Pasha ainda não concluíra a sua história, mas a expressão que cobriu o rosto do sultão bastou para interromper o seu discurso. Calou-se e não se atreveu a fitar de frente aquele que era o seu senhor. Quanto ao sultão, deixara-se dominar pela raiva, levantara-se e saíra da sala de rompante. Yusuf Pasha receou o pior. Tudo o que ele tinha em mente era alertar o amigo da juventude para os perigos da indolência e da sensualidade, bem como da influência sufocante dos eunucos. Quisera recordar ao amo a lei eterna, a qual ensina que tudo é temporário. Em vez disso, o sultão escolhera interpretar a história como uma referência de mau agouro em relação à dinastia otomana. Em relação a si mesmo. Qualquer outra pessoa teria sido executada, mas é provável que tenham sido as mesmas recordações de infância a fazer com que a misericórdia acabasse por levar a melhor. Yusuf Pasha recebeu um castigo bastante ligeiro. Foi exilado de Istambul. Para sempre. O sultão não desejava viver na mesma cidade que ele. E foi assim que ele aqui veio parar com a família, a este lugar selvagem e isolado, rodeado de rochas antigas, e decidiu que seria aqui que construiria o seu palácio no exílio. Sentia muito a falta de velha cidade, mas nunca mais voltou a ver o Bósforo.
Consta que também o sultão sentiu a falta da sua companhia, sendo muitas as vezes em que desejou a sua presença. Porém, os cortesãos, que sempre haviam invejado a influência exercida por Yusuf Pasha, arranjaram maneira de fazer com que os dois amigos jamais se voltassem a encontrar. É tudo. Estais satisfeita, minha pombinha? E vós, Orhan, sereis capaz de recordar aquilo que eu disse de um dia o repetir aos vossos filhos, quando eu já não me encontrar entre vós? Orhan sorriu e fez que sim com a cabeça. Quanto a mim, mantive um rosto inexpressivo. Sabia que o meu pai se limitara a contar meias verdades. Tinha escutado outras histórias sobre Yusuf Pasha contadas por tias e tios pertencentes ao outro ramo da família, descendentes de um tio-avô a quem o meu pai detestava e cujos filhos nunca haviam sido autorizados a visitar-nos, quer aqui quer em Istambul.
Todos eles haviam contado histórias bastante mais excitantes, bastante mais reais e infinitamente mais convincentes. Contavam como Yusuf Pasha se apaixonara pelo escravo branco que era o favorito do sultão e de como ambos tinham sido descobertos quando copulavam. O escravo fora executado no mesmo instante e os seus órgãos genitais atirados aos cães que se reuniam no exterior da cozinha real. Segundo esta versão, Yusuf Pasha fora açoitado em público, sendo depois banido da corte para viver em desgraça durante o resto da vida. No entanto, talvez a versão do meu pai também correspondesse à verdade. Talvez não existisse uma só narrativa capaz de explicar o facto de o nosso antepassado ter caído em desgraça. Ou talvez ninguém soubesse qual o verdadeiro motivo, daí que todas as versões existentes fossem falsas. Talvez.
Não tinha qualquer vontade de ofender o meu pai depois de um tão longo afastamento, daí que me refreasse e não o continuasse a interrogar. Perturbara-o profundamente há muitos anos atrás, quando me apaixonara por um mestre-escola que ali se encontrava de passagem, fugira com ele, tornara-me sua mulher e mãe dos seus filhos e apreciara a poesia que ele fazia, poesia esta que agora me parece bastante má, mas que, na época, me parecia muito bela. Infelizmente, a poesia fora sempre a verdadeira profissão de Dmitri, mas o certo é que ele tinha de ganhar a vida. Fora por isso que começara a leccionar. Era a forma por meio da qual conseguia ganhar algum dinheiro e cuidar da mãe. o pai dele morrera na Bósnia a combater pelo nosso Império. Fora o tom suave da sua voz enquanto recitava os poemas por si compostos que começara por me tocar o coração.
Tudo isto teve lugar em Konya, onde eu me encontrava a passar um tempo com a família da minha melhor amiga. Fora ela quem me dera a conhecer as maravilhas de Konya. Tínhamos visitado os túmulos dos velhos reis seljúcidas e espreitado para dento das casas pertencentes às comunidades sufis. Foi aqui que me encontrei com Dmitri pela primeira vez. Na época, eu tinha dezassete anos e ele quase trinta. Eu queria escapar à atmosfera asfixiante que se vivia em minha casa. Dmitri e a sua poesia surgiram a meus olhos como a estrada para a felicidade. Fui feliz durante algum tempo, mas nunca o bastante a ponto de obscurecer a dor que sentia por haver sido banida daquela que era a casa da minha família. Sentia a falta da minha mãe, e não demorei muito a sentir saudades do conforto característico da nossa casa. Acima de tudo, sentia a falta dos verões que passávamos aqui, nesta casa com vista para o mar. Claro que eu quisera sair de casa, mas sempre de acordo com os termos por mim estabelecidos. O édito emitido pelo meu pai declarando-me uma marginal constituíra um golpe deveras rude para mim. Na época, odiava-o. Odiava a sua mentalidade limitada. Odiava o modo como ele tratava os meus irmãos, sobretudo Halil, que, qual garanhão rebelde, se recusava a ser disciplinado. Por vezes, o meu pai chicoteava-o em frente de toda a família. Eram estas coisas que me faziam odiar tanto o meu pai. Contudo, a vontade de Halil permanecia inquebrantável. O meu pai considerava-o um anarquista preguiçoso e incapaz de sentir qualquer forma de respeito, daí que se tenha mostrado verdadeiramente surpreendido quando Halil se alistou no Exército, e, graças à história da nossa família, não demorou muito a ser promovido e a assumir o desempenho de deveres a realizar no palácio». In Tariq Ali, A Mulher de Pedra, 2000, tradução de Lucília Rodrigues, Publicações Europa América, Contemporânea, 2002/2003, ISBN 972-105-125-X.

Cortesia de PEAmérica/JDACT