domingo, 1 de maio de 2016

Estudos sobre Veneno. Maria V. Snyder. «Eu resolvi fazer o jogo dele. Apenas uma tola recusaria o trabalho. A minha voz saiu um pouquinho mais alta dessa vez. Bem, é uma posição vitalícia. O treinamento pode acabar sendo letal»

jdact e wikipedia

As lendas de Yelena Zaltana
«(…) Após os aromas acidíferos de excrementos e odor corporal, provar aquele ar era como beber um vinho fino. O calor acariciou a minha pele. Um toque agradável comparado ao calabouço constantemente húmido e gelado. Supus ser o início da estação do calor, o que significava que eu passara cinco estações trancada naquela cela, uma estação além de um ano completo. Parecia um tempo excessivamente longo para alguém cuja execução estava marcada. Cansada devido ao esforço de marchar com os pés acorrentados, fui levada até uma sala espaçosa. Mapas do Território de Ixia e das terras ao seu redor cobriam as paredes. Pilhas de livros no chão dificultavam o caminhar em linha recta. Velas em vários estágios de uso estavam espalhadas pelo recinto, e diversos documentos pareciam chamuscados, sinais claros de que haviam chegado perto demais das velas. Uma enorme mesa de madeira, abarrotada de documentos e rodeada por meia dúzia de cadeiras, ocupava o centro da sala. Nos fundos do escritório, um homem sentava-se atrás de uma escrivaninha. Nas suas costas, uma janela quadrada estava aberta, permitindo que uma brisa soprasse pelos seus cabelos à altura dos ombros. Eu estremeci, fazendo com que as correntes chacoalhassem. Pelas conversas sussurradas entre as celas da prisão, eu já concluíra que prisioneiros condenados eram levados até um oficial para confessar os seus crimes antes de serem enforcados. Trajando calça preta e uma camisa da mesma cor com dois diamantes vermelhos costurados na gola, o homem atrás da escrivaninha usava o uniforme de um conselheiro do Comandante. O seu rosto pálido não exibia nenhuma expressão. Quando os seus olhos, azuis como duas safiras, me examinaram, arregalaram-se de surpresa.
Subitamente dando-se conta de minha aparência, abaixei o olhar para a vestimenta de prisão em frangalhos e para os pés descalços sujos, ásperos de tantos calos amarelados. Pele empoeirada aparecia por baixo dos rasgos no tecido fino. Meu cabelo preto comprido não passava de um monte de nós ensebados. Suando copiosamente, cambaleei sob o peso das correntes. Uma mulher? O próximo prisioneiro a ser executado é uma mulher? A sua voz era fria. O meu corpo estremeceu só de escutar a palavra executada sendo dita em voz alta. A calma que eu havia estabelecido escapou-me. Se os guardas não estivessem comigo, teria desmoronado no chão, soluçando. Os guardas atormentavam qualquer um que demonstrasse fraqueza. O homem passou a mão pelos cachos escuros do próprio cabelo. Eu deveria ter me dado ao trabalho de reler o processo. Ele gesticulou na direcção dos guardas. Estão dispensados. Depois que se foram, ele acenou para que eu me sentasse na cadeira diante da sua escrivaninha. As correntes fizeram barulho quando me empoleirei na beirada do assento. Ele abriu a pasta sobre a mesa e examinou os papéis. Yelena, hoje pode ser o seu dia de sorte, disse. Engoli em seco uma resposta sarcástica. Uma lição importante que aprendi durante minha estada no calabouço foi a de jamais responder com impertinência. Em vez disso, abaixei a cabeça, evitando fitá-lo directamente nos olhos. O homem ficou em silêncio por algum tempo.
Bem-comportada e respeitosa. Você está começando a parecer-me uma boa candidata. Apesar da bagunça do aposento, a escrivaninha estava arrumada. Além da minha pasta e alguns utensílios para escrita, os únicos outros itens sobre a mesa eram duas estatuetas negras reluzindo com detalhes em prata, um par de panteras esculpidas com uma perfeição quase real. Foi julgada e condenada pela morte de Reyad, o filho único do general Brazell. Ele interrompeu-se, alisando as têmporas com os dedos. Isso explica a presença de Brazell aqui essa semana, e o interesse incomum que ele vem demonstrando pela agenda de execuções. O homem parecia mais estar falando consigo mesmo do que comigo. Ao escutar o nome de Brazell, senti o frio se manifestar em meu íntimo. Com o auxílio da lembrança de que logo estaria para sempre longe do alcance dele, procurei me recompor. Os militares do Território de Ixia haviam assumido o poder há apenas uma geração, contudo tal governo dera origem a leis duras, chamadas de Código de Conduta. Durante os tempos de paz, ou seja, na maior parte do tempo, o que poderia parecer estranho para os militares, o comportamento apropriado não permitia que uma vida humana fosse tirada. Caso algum assassinato fosse cometido, a punição era a execução.
Autopreservação ou mortes acidentais não eram consideradas justificativas aceitáveis. Uma vez considerado culpado, o assassino era enviado para o calabouço do Comandante para aguardar o enforcamento em praça pública. Suponho que vá contestar a condenação. Dizer que foi incriminada, ou que matou em defesa própria. Ele recostou-se na cadeira, aguardando com fatigada paciência. Não, senhor, sussurrei, o máximo de que fui capaz com as cordas vocais há muito sem serem usadas. Eu matei-o. O homem de preto endireitou-se na cadeira, lançando-me um olhar duro. Depois, gargalhou. Isso pode acabar saindo melhor do que eu planejei. Yelena, estou lhe oferecendo uma escolha. Você pode ser executada, ou pode ser a nova provadora de comida do comandante Ambrose. O último provador morreu recentemente e precisamos preencher a posição. Com o coração pulando eu o fitei, boquiaberta. Ele tinha que estar brincando. Provavelmente estava divertindo-se à minha custa. Óptima maneira de dar algumas gargalhadas. Observe a esperança e a alegria brilharem no rosto do prisioneiro antes de enviar o acusado para a forca e destroçá-lo.
Eu resolvi fazer o jogo dele. Apenas uma tola recusaria o trabalho. A minha voz saiu um pouquinho mais alta dessa vez. Bem, é uma posição vitalícia. O treinamento pode acabar sendo letal. Afinal de contas, como é que vai identificar os venenos na comida do Comandante se não sabe qual é o gosto deles? Ele ajeitou os papéis na pasta. Terá um quarto no castelo para dormir, contudo passará a maior parte do dia com o Comandante. Não haverá dias de folga. Nada de marido e nem filhos. Alguns prisioneiros chegaram a optar pela execução. Pelo menos, assim, sabiam exactamente quando iam morrer, e não precisavam ficar imaginando se não seria com a próxima mordida. Ele cerrou os dentes e um sorriso bestial apareceu no seu rosto. Estava falando sério. O meu corpo todo estremeceu. Uma chance para viver! Servir ao Comandante era melhor do que o calabouço, e infinitamente melhor do que a forca. Perguntas atravessaram a minha mente: sou uma assassina condenada, como podem confiar em mim? O que me impediria de matar o Comandante, ou de escapar? Quem é que prova a comida do Comandante agora?, perguntei, receando que, se fizesse as outras perguntas, ele se daria conta do seu erro e me enviaria para a forca». In Maria V. Snyder, Estudos sobre Veneno, 2005, As lendas de Yelena Zaltana, tradução de Maurício Araripe, ePub, Editora HR, Harlequin Enterprises, Rio de Janeiro, 2011, ISBN 978-853-980-460-3.

Cortesia de EditoraHR/HarlequinE/JDACT