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«(…)
Escancaro a porta com um pontapé, como tantas vezes me tem feito. Só ao fim de algum
tempo se levanta, como se descobrisse então que o barulho não vem do sonho, e o
coração lhe adivinhasse tempestade. Agito o rolo da mensagem, ensaiando uns passos
à rectaguarda. Com um salto arranca-mo das mãos, de olhos fitos nos meus, a boca
salitrada por alguma bebida forte da véspera. E ainda atento ao mínimo
movimento, chega-se à porta para ver melhor, a desenrolar o velino com mãos trémulas.
Basta ver-lhe o nariz franzido quando começa a leitura, para entender que deve ser
coisa grave. Mas cedo se recompõe. Quando volta a encarar-me já tem firmeza na voz.
Julgas que não sei que andaste a farejar a mensagem? Quem, eu? Era lá capaz de devassar
escritos que não me são dirigidos. Hum..., não és tu capaz senão de vasculhar o
que não te diz respeito e montar na garupa das mundairas... Pois fica sabendo que
te atiro da ravina, se deres um pio sobre o que viste. E mais nenhuma palavra de
jeito enquanto aparelha a mula, companheira de hospedaria, a não ser repetir parte
de uma frase estranha bastas vezes repetida pelo monge cego de Monzón, a mesma frase
destacada da última conversa que Ángel teve comigo, tempos antes. Lágrimas e rosas,
nada mais que lágrimas e rosas... De quem falais, afinal? Da infanta dona Isabel.
Já tanto tumulto em redor mal começa vida nova. Alguma notícia ruim, acerca
dela? Não sabes então o que viste? Vê la se te dou com a vara para não seres dissimulado.
Agora
rumina frases, pouco disposto a conversas. Nem sequer me pede para o acompanhar
quando informa que tenciona vencer as vinte léguas até Barcelona, antes do sol raiar.
E dito isto rapa a mistela que sobra da véspera, um cozido de favas ressequido agarrado
às paredes da escudela, antes de engolir o líquido da cabaça, esquecida num
poial improvisado com cestos. Mal acena do lado de fora, a picar a mula roliça direito
ao caminho mais curto, monto logo o burro para ir atrás dele, a pouca
distância, que não me falha o instinto quando adivinho grande segredo no pedido
de ajuda dissimulado no anverso do tornez: vem em nosso auxílio senhor que fizeste
o céu e a terra. Não descanso enquanto o não descobrir. As bestas correm ligeiras,
rumo aos muros da cidade, de modo que em pouco tempo avistamos os contornos do
burgo. À direita os esboços das torres sineiras, gráceis ornamentos da catedral
que em breve vai ser demolida, para nova construção. À esquerda as chaminés do Palau
Reial Major, talhadas contra o céu da manhã, como ponteiros pardos lavados por jorros
de luz. Mais abaixo, ainda no exterior da muralha, descansam os telhados de um aglomerado
de casas, já denso junto à porta principal, bordados por uma auréola dourada.
A vigilância
foi reforçada. Há mais guardas em cada uma das torres cilíndricas que ladeiam o
portal, de vigia sobre o aqueduto. É tanta gente que gritam cá para baixo, a tentar
pôr ordem na circulação penosa. O meu burro é pequeno, consigo aninhá-lo na passagem
de peões que começa à porta do Arcediago, para cruzar a frente da catedral e meter
pela Carrer dos Condes. Entusiasmo ceifado pela luz. É-me vedada a passagem logo
a seguir à casa do bispo. Um guarda adiantado sugere que contorne o edifício pelas
traseiras, fazendo a baixada perpendicular à rua principal. Mas de novo sou
travado por mais guardas a meio, uns passos à frente da porta das cavalariças do
paço. Só me resta voltar para trás pelo largo da catedral, fazendo um troço da rua
del Bisbe, ao lado dos claustros, antes de cortar à esquerda e desenhar, com
burricadas ligeiras, o novelo da rua da Pietat. Mal acabo de vencer o lado de trás
do monumento, dou com nova fila de almogávares vindos da fronteira de Aragão, onde
a baixada de Santa Clara, direita à Plaça del Palau, cruza a Carrer dos Condes».
In
Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel, Saída de Emergência, 2008, ISBN
978-989-637-034-3.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT