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«Desta
vez passou uma longa temporada nas terras à volta de Guimarães que sempre revê com
saudade. Fez-se homem nestas matas, nas glebas de centeio e urze onde em breve vai
despontar a Primavera. Aprendeu a manejar as armas, a enfrentar os rivais dos primeiros
torneios nos amplos espaços em redor do burgo. Aqui viveu ainda as mais puras histórias
de amor, longe de olhares indiscretos, com a cumplicidade dos irmãos adoptivos e
dos companheiros chegados. Mas nem todas as memórias são pacíficas como a brisa,
às vezes voltam como tempestades. Neste lugar ficou impressa a marca mais dolorida
da vida, tinha então dezanove anos, o corpo feito do guerreiro de hoje, mas nenhumas
certezas sobre o seu papel de líder. Daí a momentos poderia lá passar na subida
para Braga, se quisesse, à saída para S. Torcato. S. Mamede de Aldão, o campo
onde enfrentou as forças de dona Teresa e Fernão Peres Trava, ainda as fidelidades
das gentes do condado e da Galiza se misturavam em sentimentos contraditórios, repartidos
pelos adeptos da mãe e da integração do condado, e pelos obreiros da separação
que ele mesmo comandava.
Era tão
difícil decidir, nessa altura. Hoje toma decisões com a rapidez do ar atravessando
as narinas, mas naquele tempo hesitava depois de sacrificar noites seguidas aos
problemas sem lograr ver a solução quando acordava. Frei Raimundo tudo pressente.
Guarda o breviário equilibrado no cachaço do cavalo e adianta-se para ficar de novo
a seu lado. Lembranças antigas, senhor? Bem sabeis como este lugar me traz angústia.
Não queria chegar à expulsão de minha mãe dos domínios que ela herdara de meu
avô. Afonso VI amava tanto essa filha natural, mais do que às outras, diziam. Mas
os acontecimentos precipitaram-se, tomaram rumos inesperados. Às vezes as circunstâncias
endurecem as nossas atitudes. Falais exactamente de quê, frei Raimundo? De um tão
grande império deixado a Urraca, das suas fragilidades aproveitadas pelas ambições
de reinos emergentes, dos inevitáveis confrontos com vossa mãe, até dos vossos com
Afonso Raimundes. Com isso considerais-me vítima ou carrasco? Fostes um
instrumento, nada mais. Não deveis mortificar-vos, senhor. Farei por não me atormentar,
vereis. Folgo em saber.
E com
isto o frade atrasa a montada para deixar como há pouco o futuro rei entregue aos
seus pensamentos. Dois anos antes de nascer, sua tia Urraca ficava viúva e o
avô designava o neto Afonso Raimundes como sucessor. Mas em Toledo onde o leonês
viria a falecer, a nobreza e clero preferiam a filha como legítima herdeira. Ao
imperador moribundo só lhe restava acatar a decisão das forças maiores do seu império.
Ainda assim sugeria um novo casamento de Urraca com o parente de Aragão, Afonso
I o Batalhador ou o Aragonês. Solteiro, sem herdeiros e um guerreiro
experimentado, poderia ajudá-la a superar os maiores obstáculos da governação. A
rainha revelava-se vulnerável a intrigas que não raras vezes fomentava, aos
afectos partilhados por vários amantes, às oposições da Galiza e dos outros
reinos sob o seu domínio. Cedo aliava o filho menor aos assuntos do império para
apelar à unidade entre os seus adeptos e os simpatizantes da vontade do pai.
Mas com isso despoletava em Teresa, a irmã ilegítima casada com o conde Henrique,
a ambição de ser rainha. Nenhuma outra irmã lhe trazia tantos cuidados como Teresa
que não tendo reino algum, em todo o lado lembrava como o próprio filho, Afonso
Henriques, era tão neto de Afonso VI como o filho de Urraca.
Para
o reforçar Teresa usava as fragilidades da irmã em seu proveito, mais ainda
depois do conde Henrique ter morrido. Intrigava a rainha de Leão e Castela com inimigos,
até com aliados antigos conseguindo o apoio de famílias galegas como a casa de
Trastamara. Primeiro através de uma união mal assumida com Bermudo Peres Trava,
afinal mais tarde casado com Urraca Henriques, sua filha mais velha à guarda de
Bermudo durante algum tempo, depois por força de outra relação quase incestuosa
com Fernão Peres, irmão do antigo companheiro. Conseguia ainda tomar Tui e Ourense,
território adstrito ao mosteiro de Celanova, em busca de aliados galegos, enquanto
despertava a revolta dos partidários da irmã. Urraca pagava-lhe na mesma moeda.
Incendiava os ânimos do sobrinho contra própria mãe. Colocava até à disposição das
suas ambições de herdeiro imberbe a catedral de Zamora, o clero da sua confiança.
Que se armasse ali cavaleiro. E ele armava, mal completava os dezasseis anos, no
dia de Pentecostes, incentivado por uma fatia da nobreza de Portugal sedenta da
autonomia. Passava a intitular-se príncipe de Portugal, neto do imperador Afonso
VI, mal Afonso Raimundes se fazia coroar rei em Leão. Tal como a mãe também aproveitava
a divisão de famílias galegas influentes, fazia concessões a mosteiros no outro
lado das fronteiras políticas e administrativas». In Maria Helena Ventura, Afonso,
O Conquistador, Saída de Emergência, 2007, ISBN 978-972-883-985-7.
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