quarta-feira, 4 de maio de 2016

Um Nome Escrito em Sangue. Matt Rees. «Del Monte inclinou-se. O que quer dizer é que eles precisam vir até si. Não foram apenas os céus cinzentos do norte que levaram mestre Caravaggio a sair de Milão. Scipione abriu as mãos, num movimento de interrogação»

Cortesia de wikipedia e jdact

A História de Caravaggio. Roma. Jardim do Mal. 1605
«(…) Del Monte estalou os dedos. Um servo surgiu dos fundos da igreja usando a cor turquesa de del Monte e inclinando-se. Traga o mestre Caravaggio à minha presença. Vou recebê-lo na minha galeria. Sim, senhor, afirmou o servo, ajoelhando-se em direcção ao altar e entrando na piazza num trote. Sabe que ele pinta sem a tradicional preparação, disse del Monte. Nada de esboços. Ele trabalha directamente na tela a partir do natural. De modelos que pousam no seu estúdio. O momento é simplesmente captado, respondeu Scipione, movimentando os dedos como um ladrão que se preparasse para roubar uma carteira. E Jesus, passando adiante dali, viu assentado na recebedoria um homem, chamado Mateus, e disse-lhe: segue-me. E ele, levantando-se, seguiu-o. Del Monte observou o rosto de Scipione transformando-se a cada detalhe que notava na pintura, movendo-se da perplexidade para a compreensão e a admiração. Está vendo aqui?, perguntou Scipione tocando a manga de del Monte. É como se, quando o Nosso Senhor ergue a mão, todos segurassem a respiração. É uma coisa realmente viva.
Os dois cardeais saíram de São Luís, com os seus batedores afastando a multidão de romanos que passavam pela Piazza Navona e Santa Maria Rotonda, a igreja inserida no grande Panteão do imperador Adriano. Eles cruzaram a rua para chegar ao palácio de del Monte, cujo nome homenageava a filha ilegítima do imperador do Sacro Império Romano, a qual ficara conhecida como Madama. E subiram a ampla escadaria. Scipione fez uma pausa na plataforma entre dois lances da escada para recuperar o fôlego. Tenho a certeza de que este pintor não foi treinado na cidade de Caravaggio. Eu estive por lá. É um lugar atrasado que só serve para produzir a seda da minha roupa de baixo. Del Monte acompanhou o passo da subida forçada do homem mais jovem. Por fim chegaram ao andar onde ele tinha os seus apartamentos. Ele foi aprendiz do mestre Peterzano, lá em Milão. Milão... Agora estou entendendo. Na sua obra, pode-se detectar alguma coisa de outros grandes artistas dessa região. Estou pensando no uso que Savoldo faz do claro e do escuro. Mas, se quiser fazer carreira, um artista precisa vir a Roma.
Del Monte inclinou-se. O que quer dizer é que eles precisam vir até si. Não foram apenas os céus cinzentos do norte que levaram mestre Caravaggio a sair de Milão. Scipione abriu as mãos, num movimento de interrogação. Foi alguma coisa relacionada a uma prostituta desfigurada e o ferimento provocado pelo seu amante ciumento, que, por acaso, também era polícia, disse del Monte. O dar de ombros de Scipione indicava que essas circunstâncias não o surpreendiam ou perturbavam. Quando ele veio morar neste palácio, disse del Monte, Caravaggio era apenas um chamariz milanês. De alguma forma, ainda é. A sua obra muda mais do que ele parece mudar na sua pessoa. Há alguma coisa doce e espiritualizada em suas entranhas, e é de lá que ele extrai a sua arte. Quando chegou a Roma, ele veio directamente para cá? Ele ficou algum tempo com um padre, que o manteve como um favor a seus patronos da família Colonna. O olhar de Scipione ficou distante. Del Monte percebeu que o sobrinho-cardeal estava considerando o lugar de Caravaggio no cálculo de influência e domínio que um homem da sua posição conservava o tempo todo. Os Colonna contavam-se entre as mais poderosas famílias romanas.
Entendo, disse Scipione, e os seus movimentos foram ficando mais lentos, como se ele precisasse de todas as suas funções para avaliar as vantagens políticas que poderia obter por meio do artista. Ele veio para mim há uma década ou um pouco mais, disse del Monte. Eu dei-lhe um quarto e um estúdio, bem como um lugar à mesa com os músicos e homens de ciência que viviam sob a minha protecção. Sob a sua protecção, a embaixada da Toscana ficou famosa como local de arte e razão por excelência». In Matt Rees, Caravaggio, tradução de Valter Siqueira, 2012, Novo Século Editora, 2014, ISBN 978-854-280-209-2.

Cortesia NSéculoE/JDACT