Cortesia
de wikipedia e jdact
A
História de Caravaggio. Roma. Jardim do Mal. 1605
«(…)
Del Monte estalou os dedos. Um servo surgiu dos fundos da igreja usando a cor
turquesa de del Monte e inclinando-se. Traga o mestre Caravaggio à minha
presença. Vou recebê-lo na minha galeria. Sim, senhor, afirmou o servo,
ajoelhando-se em direcção ao altar e entrando na piazza num trote. Sabe
que ele pinta sem a tradicional preparação, disse del Monte. Nada de esboços.
Ele trabalha directamente na tela a partir do natural. De modelos que pousam no
seu estúdio. O momento é simplesmente captado, respondeu Scipione, movimentando
os dedos como um ladrão que se preparasse para roubar uma carteira. E Jesus, passando adiante dali, viu
assentado na recebedoria um homem, chamado Mateus, e disse-lhe: segue-me. E
ele, levantando-se, seguiu-o. Del Monte observou o rosto de Scipione
transformando-se a cada detalhe que notava na pintura, movendo-se da
perplexidade para a compreensão e a admiração. Está vendo aqui?, perguntou
Scipione tocando a manga de del Monte. É como se, quando o Nosso Senhor ergue a
mão, todos segurassem a respiração. É uma coisa realmente viva.
Os
dois cardeais saíram de São Luís, com os seus batedores afastando a multidão de
romanos que passavam pela Piazza Navona e Santa Maria Rotonda, a igreja
inserida no grande Panteão do imperador Adriano. Eles cruzaram a rua para
chegar ao palácio de del Monte, cujo nome homenageava a filha ilegítima do
imperador do Sacro Império Romano, a qual ficara conhecida como Madama.
E subiram a ampla escadaria. Scipione fez uma pausa na plataforma entre dois
lances da escada para recuperar o fôlego. Tenho a certeza de que este pintor
não foi treinado na cidade de Caravaggio. Eu estive por lá. É um lugar atrasado
que só serve para produzir a seda da minha roupa de baixo. Del Monte acompanhou
o passo da subida forçada do homem mais jovem. Por fim chegaram ao andar onde
ele tinha os seus apartamentos. Ele foi aprendiz do mestre Peterzano, lá em
Milão. Milão... Agora estou entendendo. Na sua obra, pode-se detectar alguma coisa
de outros grandes artistas dessa região. Estou pensando no uso que Savoldo faz
do claro e do escuro. Mas, se quiser fazer carreira, um artista precisa vir a
Roma.
Del
Monte inclinou-se. O que quer dizer é
que eles precisam vir até si. Não foram apenas os céus cinzentos
do norte que levaram mestre Caravaggio a sair de Milão. Scipione abriu as mãos,
num movimento de interrogação. Foi alguma coisa relacionada a uma prostituta
desfigurada e o ferimento provocado pelo seu amante ciumento, que, por acaso,
também era polícia, disse del Monte. O dar de ombros de Scipione indicava que
essas circunstâncias não o surpreendiam ou perturbavam. Quando ele veio morar
neste palácio, disse del Monte, Caravaggio era apenas um chamariz milanês. De
alguma forma, ainda é. A sua obra muda mais do que ele parece mudar na sua
pessoa. Há alguma coisa doce e espiritualizada em suas entranhas, e é de lá que
ele extrai a sua arte. Quando chegou a Roma, ele veio directamente para cá? Ele
ficou algum tempo com um padre, que o manteve como um favor a seus patronos da
família Colonna. O olhar de Scipione ficou distante. Del Monte percebeu que o
sobrinho-cardeal estava considerando o lugar de Caravaggio no cálculo de
influência e domínio que um homem da sua posição conservava o tempo todo. Os
Colonna contavam-se entre as mais poderosas famílias romanas.
Entendo,
disse Scipione, e os seus movimentos foram ficando mais lentos, como se ele
precisasse de todas as suas funções para avaliar as vantagens políticas que poderia
obter por meio do artista. Ele veio para mim há uma década ou um pouco mais,
disse del Monte. Eu dei-lhe um quarto e um estúdio, bem como um lugar à mesa
com os músicos e homens de ciência que viviam sob a minha protecção. Sob a sua
protecção, a embaixada da Toscana ficou famosa como local de arte e razão por
excelência». In Matt Rees, Caravaggio, tradução de Valter Siqueira, 2012, Novo
Século Editora, 2014, ISBN 978-854-280-209-2.
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