quarta-feira, 11 de maio de 2016

A Vitória do Imperador. Domingos Amaral. «O príncipe sorriu e ergueu o braço, passando-o sobre a sua cabeça, pousando-o por fim nas suas costas. Chamoa entrelaçou as suas pernas nas dele, entusiasmada. Queria-o sempre mais. Amavam-se duas, três vezes por dia, para recuperar o tempo perdido»

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A profecia da Normanda. 1130-1131
«O dia acabara de nascer e na lareira do quarto do Castelo de Guimarães crepitavam ainda as brasas quando Chamoa Gomes acordou, ligeiramente incomodada. Uma sensação de alarme interior agitou-a, mas rapidamente a afastou. O corpo quente de Afonso Henriques encontrava-se à sua esquerda, tudo estava bem. Emocionada, Chamoa aninhou-se no seu amado, que ainda dormia. Haviam sido sete noites fogosas desde que chegara do Mosteiro de Vairão, donde fugira a cavalo, mas finalmente estavam juntos. Amo-o tanto... Fechou os olhos e tentou adormecer de novo. Não se ouvia vivalma na torre de menagem, a não ser lá em baixo, nas cozinhas do castelo, onde a padeira já cirandava junto ao forno. O cheiro do pão fresco chegava-lhe às narinas, mas não lhe deu fome, pelo contrário. Enjoada, Chamoa revirou-se na cama, tentando não acordar o príncipe de Portugal, enquanto o olhava demoradamente. Tal como muitos outros portucalenses, ele adoptara os costumes de Bizâncio, apresentava uma barba e um cabelo longos, que quase o faziam bonito, e ela suspirou.
O meu gigante... Tinham sofrido tanto... As permanentes desavenças só há uma semana se haviam extinguido. Chamoa deixara finalmente o mosteiro onde se fechara mais de um ano, Afonso Henriques perdoara-lhe as falhas e o reencontro dera-se em Guimarães, naquela cama onde celebraram por fim a consumação de um amor sempre tórrido, mas tanto tempo massacrado pelas determinações do orgulho e da política. Só o perdão genuíno e a crença num futuro conjunto os podia unir. Ainda angustiada com o estranho pressentimento de que o podia perder de novo, abraçou-o mais, abraçou-o tanto que ele acordou, estremunhado. O príncipe sorriu e ergueu o braço, passando-o sobre a sua cabeça, pousando-o por fim nas suas costas. Chamoa entrelaçou as suas pernas nas dele, entusiasmada. Queria-o sempre mais. Amavam-se duas, três vezes por dia, para recuperar o tempo perdido. Vinde para dentro de mim...
Em Guimarães, a minha mulher, Maria Gomes, irmã de Chamoa, fora a única a desconfiar daquele fogoso arrebatamento. Logo no dia em que a mana chegou do mosteiro, agradei-me por existir finalmente harmonia entre aqueles dois, mas Maria comentou: Lourenço Viegas, com a Chamoa nunca se sabe! Deus e o Diabo dançam-lhe na alma, de braço dado. Encolhi os ombros ao mau agoiro e secretamente julguei que minha mulher invejava a irmã, que sempre fora mais bonita. Desde a infância que Chamoa sonhava ser princesa, ou mesmo rainha, e admiti que Maria não lidava bem com a possibilidade de esse desejo finalmente se concretizar. Era a única relutante, pois, tal como eu, também meu pai, Egas Moniz, e meu tio, Ermígio Moniz, apostavam que aquela união, depois de tanta desavença, seria agora sólida e inquebrável. O nosso desejo comum, embora genuíno, não era inocente, nem desalinhado com o interesse geral, pois aquele namoro era proveitoso para os portucalenses. Chamoa era filha de Gomes Nunes, senhor de Toronho, unindo-se à minha cunhada o príncipe de Portugal passava a dominar as terras de Tui, permitindo que o Condado Portucalense crescesse a norte do rio Minho.
Além disso, o facto de Chamoa ser uma Trava, pois era também filha de Elvira Peres Trava e sobrinha de Fernão Peres, poderia no futuro possibilitar a paz entre Afonso Henriques e aquela poderosa família galega. Casado com Chamoa, o príncipe uniria o Condado Portucalense à Baixa Galiza, concretizando o velho sonho de seu pai, o conde Henrique: um reino único, a norte e a su1 do rio Minho. Durante aqueles sete bonitos e solarengos dias de outono, em Guimarães o ambiente geral era, pois, de alegria e esperança. O meu melhor amigo e Chamoa permaneciam horas fechados no quarto e só se juntavam a nós a meio do dia, num repasto à volta da mesa, apreciando as apetitosas comidas que a bela Teresa de Celanova, segunda esposa de meu pai, confecionava nas cozinhas do castelo. Foram as viandas e as tigeladas de leite as primeiras culpadas dos vómitos de Chamoa naquela manhã. A minha Maria foi de súbito chamada ao quarto, pois a irmã começara a despejar o estômago, decerto enfastiada com os excessos da véspera. Notei um minúsculo franzir de testa na minha esposa, mas, contagiado pela boa disposição que reinava naquela alcáçova há sete dias, não me preocupei, nem quando Maria regressou do quarto do príncipe e ordenou a uma das criadas que fosse depressa chamar o curandeiro. Meu pai, sentado ao lado de Afonso Henriques, resmungou: a Teresa junta ovos a mais...» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT