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Dom
Rafael. Derrota e rota
«O
essencial é adaptar-se. Já sei que com essa idade é difícil. Quase impossível.
E contudo. Afinal de contas, o meu exílio é meu. Nem todos têm um exílio próprio.
A mim quiseram empurrar um alheio. Tentativa inútil. Transformei-o em meu. Como
foi? Isso não importa. Não é um segredo nem uma revelação. Eu diria que é
preciso começar apoderando-se das ruas. Das esquinas. Do céu. Dos cafés. Do
sol, e o que é mais importante, da sombra. É somente quando alguém chega a
perceber que uma rua não lhe é estrangeira que a rua pára de vê-lo como um
estranho. É assim com todo o resto. No princípio, andava com uma bengala, como
convém, talvez, aos meus sessenta e sete anos. Mas não era coisa da idade. Era
uma consequência do desalento. Lá, sempre fazia o mesmo caminho ao voltar para
casa. E aqui isso me fazia falta. As pessoas não entendem esse tipo de
nostalgia. Acreditam que a nostalgia só tem a ver com céus e árvores e
mulheres. No máximo, com militância política. A pátria, enfim. Mas eu sempre
tive nostalgias mais cinzentas, mais opacas. Essa, por exemplo. O caminho de
volta para casa. Uma tranquilidade, um sossego, saber o que vem depois de cada
esquina, de cada sinal, de cada banca de jornal. Aqui, em compensação, comecei
a caminhar e a me surpreender. E a surpresa fatigava-me. E ainda por cima, você
não chega em casa, mas chega à residência. Cansado de surpreender-me, isso sim.
Talvez tenha sido por isso que recorri à bengala. Para amenizar tantas
surpresas. Ou talvez para que os compatriotas que ia encontrando me dissessem: mas,
dom Rafael, lá o senhor não usava bengala, e eu pudesse responder: bem, vocês
também não usavam fato. Surpresa por surpresa. Um desses assombros foi uma loja
com máscaras de cores um pouco abusivas, hipnotizantes. Não conseguia habituar-me
às máscaras, embora sempre tenham sido as mesmas. Mas junto com a recorrência
das máscaras, repetia-se também o meu desejo, ou talvez a minha expectativa, de
que as máscaras mudassem, e diariamente me assombrava ao encontrar as mesmas. E
então a bengala me ajudava. Porquê? Para quê? Bem, para apoiar-me quando essa modesta
decepção me assaltava, quer dizer, quando comprovava que as máscaras não haviam
mudado. E devo reconhecer que a minha expectativa não era tão absurda. Porque a
máscara não é um rosto. É um artifício, não? Um rosto só muda por acidente. Na sua
estrutura, digo; não na sua expressão, que, essa sim, é variável. Em compensação,
uma máscara pode mudar por mil motivos. Digamos: por ensaio, por experimentação,
por ajuste, por melhoria, por deterioração, por substituição. Só depois de três
meses compreendi que não podia esperar nada das máscaras. Não iam mudar,
aquelas insistentes, aquelas turronas. E comecei a fixar-me nos rostos. E
afinal, foi uma boa troca. Os rostos não se repetiam. Vinham para mim, e deixei
a bengala. Já não precisava de me apoiar para suportar o espanto. Talvez um
rosto não mude com os dias, mas com os anos; no entanto, os que vinham a mim
(com excepção de uma mendiga ossuda e tímida) eram sempre novos. E com eles
vinham todas as classes sociais, em carros impressionantes, em carrinhos
modestos, em autocarros, em cadeiras de rodas ou simplesmente caminhando. Parei
de sentir falta do caminho, montevideano e conhecido, da volta a casa. Na nova
cidade havia novas rotas. De rota vem derrota, já sei. Nossa derrota pode não
ser total, mas é derrota. Já tinha entendido, mas pude confirmá-lo totalmente
quando dei a minha primeira aula. O aluno pôs-se de pé e pediu permissão para
perguntar. E perguntou: mestre, por que razão o seu país, uma democracia
liberal estabelecida, passou tão rápido a ser uma ditadura militar? Pedi que não
me chamasse de mestre. Não é nosso costume. Mas pedi isso apenas para poder
organizar a resposta. Repeti o consabido: que o processo começou muito antes, não
na calma, mas no subsolo da calma. E fui anotando na lousa as várias rubricas,
os períodos, as caracterizações, os corolários. O rapaz concordou. E li em seus
olhos compreensivos toda a dimensão da minha derrota, da minha rota. E desde
então volto cada tarde por um rota distinta. Por outro lado, agora já não
regresso a uma residência. Tampouco é uma casa. É simplesmente um apartamento,
ou seja, um simulacro de casa: uma residência com agregados. Mas a nova cidade
me agrada, porque não? Sua gente, menos mal, tem defeitos. E é muito divertido
especializar-me neles. As virtudes, é claro que também as possuem, são
geralmente tediosas. Os defeitos, não. O pedantismo, por exemplo, é uma zona
prodigiosa, na qual nunca acabo de especializar-me. Minha bengala, sem ir mais longe,
era um indício de pedantismo, e obviamente tive que abandoná-la. Quando me
sinto pedante, me deprecio um pouquinho, e isso é péssimo. Porque nunca é bom
depreciar-se, a menos que existam razões bem fundadas, o que não é meu caso». In Mario
Benedetti, Primavera num Espelho Partido, 1982, Alfaguara, (Editora Objectiva),
2011, ISBN 978-857 962-104-8.
Cortesia
de Alfaguara/JDACT