sexta-feira, 27 de maio de 2016

Primavera num Espelho Partido. Mario Benedetti. «Na nova cidade havia novas rotas. De rota vem derrota, já sei. Nossa derrota pode não ser total, mas é derrota. Já tinha entendido, mas pude confirmá-lo totalmente…»

jdact e wikipedia

Dom Rafael. Derrota e rota
«O essencial é adaptar-se. Já sei que com essa idade é difícil. Quase impossível. E contudo. Afinal de contas, o meu exílio é meu. Nem todos têm um exílio próprio. A mim quiseram empurrar um alheio. Tentativa inútil. Transformei-o em meu. Como foi? Isso não importa. Não é um segredo nem uma revelação. Eu diria que é preciso começar apoderando-se das ruas. Das esquinas. Do céu. Dos cafés. Do sol, e o que é mais importante, da sombra. É somente quando alguém chega a perceber que uma rua não lhe é estrangeira que a rua pára de vê-lo como um estranho. É assim com todo o resto. No princípio, andava com uma bengala, como convém, talvez, aos meus sessenta e sete anos. Mas não era coisa da idade. Era uma consequência do desalento. Lá, sempre fazia o mesmo caminho ao voltar para casa. E aqui isso me fazia falta. As pessoas não entendem esse tipo de nostalgia. Acreditam que a nostalgia só tem a ver com céus e árvores e mulheres. No máximo, com militância política. A pátria, enfim. Mas eu sempre tive nostalgias mais cinzentas, mais opacas. Essa, por exemplo. O caminho de volta para casa. Uma tranquilidade, um sossego, saber o que vem depois de cada esquina, de cada sinal, de cada banca de jornal. Aqui, em compensação, comecei a caminhar e a me surpreender. E a surpresa fatigava-me. E ainda por cima, você não chega em casa, mas chega à residência. Cansado de surpreender-me, isso sim. Talvez tenha sido por isso que recorri à bengala. Para amenizar tantas surpresas. Ou talvez para que os compatriotas que ia encontrando me dissessem: mas, dom Rafael, lá o senhor não usava bengala, e eu pudesse responder: bem, vocês também não usavam fato. Surpresa por surpresa. Um desses assombros foi uma loja com máscaras de cores um pouco abusivas, hipnotizantes. Não conseguia habituar-me às máscaras, embora sempre tenham sido as mesmas. Mas junto com a recorrência das máscaras, repetia-se também o meu desejo, ou talvez a minha expectativa, de que as máscaras mudassem, e diariamente me assombrava ao encontrar as mesmas. E então a bengala me ajudava. Porquê? Para quê? Bem, para apoiar-me quando essa modesta decepção me assaltava, quer dizer, quando comprovava que as máscaras não haviam mudado. E devo reconhecer que a minha expectativa não era tão absurda. Porque a máscara não é um rosto. É um artifício, não? Um rosto só muda por acidente. Na sua estrutura, digo; não na sua expressão, que, essa sim, é variável. Em compensação, uma máscara pode mudar por mil motivos. Digamos: por ensaio, por experimentação, por ajuste, por melhoria, por deterioração, por substituição. Só depois de três meses compreendi que não podia esperar nada das máscaras. Não iam mudar, aquelas insistentes, aquelas turronas. E comecei a fixar-me nos rostos. E afinal, foi uma boa troca. Os rostos não se repetiam. Vinham para mim, e deixei a bengala. Já não precisava de me apoiar para suportar o espanto. Talvez um rosto não mude com os dias, mas com os anos; no entanto, os que vinham a mim (com excepção de uma mendiga ossuda e tímida) eram sempre novos. E com eles vinham todas as classes sociais, em carros impressionantes, em carrinhos modestos, em autocarros, em cadeiras de rodas ou simplesmente caminhando. Parei de sentir falta do caminho, montevideano e conhecido, da volta a casa. Na nova cidade havia novas rotas. De rota vem derrota, já sei. Nossa derrota pode não ser total, mas é derrota. Já tinha entendido, mas pude confirmá-lo totalmente quando dei a minha primeira aula. O aluno pôs-se de pé e pediu permissão para perguntar. E perguntou: mestre, por que razão o seu país, uma democracia liberal estabelecida, passou tão rápido a ser uma ditadura militar? Pedi que não me chamasse de mestre. Não é nosso costume. Mas pedi isso apenas para poder organizar a resposta. Repeti o consabido: que o processo começou muito antes, não na calma, mas no subsolo da calma. E fui anotando na lousa as várias rubricas, os períodos, as caracterizações, os corolários. O rapaz concordou. E li em seus olhos compreensivos toda a dimensão da minha derrota, da minha rota. E desde então volto cada tarde por um rota distinta. Por outro lado, agora já não regresso a uma residência. Tampouco é uma casa. É simplesmente um apartamento, ou seja, um simulacro de casa: uma residência com agregados. Mas a nova cidade me agrada, porque não? Sua gente, menos mal, tem defeitos. E é muito divertido especializar-me neles. As virtudes, é claro que também as possuem, são geralmente tediosas. Os defeitos, não. O pedantismo, por exemplo, é uma zona prodigiosa, na qual nunca acabo de especializar-me. Minha bengala, sem ir mais longe, era um indício de pedantismo, e obviamente tive que abandoná-la. Quando me sinto pedante, me deprecio um pouquinho, e isso é péssimo. Porque nunca é bom depreciar-se, a menos que existam razões bem fundadas, o que não é meu caso». In Mario Benedetti, Primavera num Espelho Partido, 1982, Alfaguara, (Editora Objectiva), 2011, ISBN 978-857 962-104-8.

Cortesia de Alfaguara/JDACT