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Primeiro
Movimento
«Naquela
noite chovia sobre a cidade. Há pelo menos duas horas que as ruas se tinham
silenciado e o resplendor inútil dos candeeiros iluminava os silêncios com um bafo
anilado que pousava calmamente sobre a calçada nova e a superfície do asfalto. O
alvoroço da água a cair, à meia-noite, conferia a Viena o aspecto de uma cidade
deserta, como no final de uma guerra que se tenha perdido; uma cidade desolada
e temerosa onde a culpa continuava a incomodar depois de três gerações e a
velha memória apagava sorrisos com a severidade de um requiem. A espaços, como
se fossem espasmos, violentas rajadas de vento de Oeste aumentavam a sensação
de frio e alguns relâmpagos, mascarados por entre as nuvens, iluminavam os céus
sobre o horizonte. Outubro acabava de começar, mas o ar já se fazia sentir na cara
e nas mãos como se os dias estivessem a passar pela metade do Inverno, sem
dissimulação. Cautelosos, silenciosos e furtivos, três homens saíram apressados
de um Skoda checo estacionado minutos antes na Karlsplatz na esquina com a
Karlsgasse, precisamente em frente do flanco direito da Karlskirche, a majestosa
igreja erigida em honra de São Carlos Borromeu. Iam vestidos com um fato de
neopreno, iguais aos que são usados pelos mergulhadores, mas com o capuz
recortado, e tinham coberto a cabeça com gorros pretos de nylon sem brilho.
Calçavam sapatilhas desportivas também pretas e os três moviam-se com
serenidade e agilidade, demonstrando conhecer com absoluta precisão o que
tinham de fazer. Momentos antes tinham sincronizado os seus relógios para as
doze em ponto.
O
grego Nikos fbi o primeiro a sair do carro. Depois dele saíram o austríaco
Wilhelm e o italiano sem nome. Ajustaram o gorro para se protegerem da chuva e
foram buscar os respectivos sacos à bagageira. Ao fechar o capô, o italiano
levantou a cabeça para o céu por momentos. Nikos também olhou para o alto. Maldita
seja! Tinha de ser esta noite!, resmungou o grego com a boca quase fechada e torcida,
desenhando um exagerado gesto de desagrado. Agora só falta que um raio nos caia
em cima. Silêncio! O italiano voltou-se para ele, irado. Quero silêncio
absoluto! Entendido? Mas... Cala-te! E depois não sei do que te queixas, grego:
uns quantos trovões até vinham a calhar para não sermos só nós a fazer barulho.
Os três homens, transportando cada um deles um saco preto na mão, correram até
à parede lateral da Karlskirche e ficaram junto ao muro de pedra. Uma vez ali,
asseguraram-se de que ninguém os tinha visto a cruzar a rua e prepararam-se
para avançar com toda a rapidez pela taipa até chegarem à fachada principal da
igreja. Um primeiro raio iluminou a abóbada do templo: era de estilo romano,
com mais de setenta metros de altura; e o clarão do céu afogou-se no lago
contíguo no qual se reflectiam os perfis do edifício sacro. Instantes depois um
novo relâmpago e o primeiro trovão sacudiram a noite com força. O ribombar
tinha começado. Odeio as trovoadas!, amaldiçoou o grego. Cala-te!, o italiano
levou um dedo aos lábios e logo indicou com a mão que o seguissem.
Sem
deixar a parede chegaram ao frontispício da igreja. O italiano olhou para um
lado e para o outro e ordenou-lhes que parassem. À direita erguia-se a
Universidade Técnica, fechada e fantasmal a essas horas; e por detrás
estendia-se o parque que rodeava o pequeno lago. Todas as ruas próximas continuaram
desertas até que, ao fim de alguns segundos, uma furgoneta branca passou
lentamente pela Gusshausstrasse com os limpa-pára-brisas a lutar contra a água que
naquele momento caía com a intensidade de um aguaceiro de Verão. Com medo de
serem descobertos colaram-se à parede como sombras pondo-se a correr e
refugiando-se debaixo do átrio de uma das torres quadradas. Era impossível que
o condutor daquele veículo tivesse reparado neles, pensou o italiano. Quando a
furgoneta branca se perdeu pelo fim da rua, sem parar, o italiano deu ordem de
prosseguirem. E depois, em Janeiro, o calor vai sufocar-nos... Cala-te, por…!
Muito
devagar, procurando a protecção do arco da torre e o abrigo dos encaixes e
saliências do edifício, foram-se aproximando da imponente coluna da direita.
Outro raio iluminou durante alguns instantes a fachada da igreja. De onde
tinham parado, a visão daquelas colunas tão parecidas com as que Trajano ergueu
em Roma, assim como a torre austríaca na qual antes se tinham resguardado e a
mesma entrada grega, que imitava a do Pártenon, revelavam-se impressionantes.
Os três homens permaneceram a observá-las por um instante, sobressaltados ou
talvez apenas rendidos à curiosidade; mas o italiano sem nome reagiu de
imediato, percorreu o ultimo percurso do seu trajecto e deteve-se aos pés da
coluna. Aqui, ordenou num sussurro. Venham para aqui. Nikos e Wilhelm chegaram
ao pé dele e olharam para cima. A coluna, coroada por uma peculiar sacada
dourada e uma terminação de zimbório com o tecto abobadado, parecia elevar-se
até às portas do céu, onde as nuvens se abraçavam. De seguida voltaram-se para
o italiano, confusos. De certeza que é aqui?, o grego franziu os olhos. Sim!,
respondeu o italiano, quase ofendido. Aí dentro, no interior desta coluna,
existe uma escada em caracol que ascende até à parte mais alta. E aí é
precisamente onde nós vamos». In António Gómez Rufo, A Noite do Tamarindo,
tradução de Maria Teresa Martins, Saída de Emergência, 2009, ISBN
978-989-637-147-0.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT