domingo, 8 de maio de 2016

A Noite do Tamarindo. António Gómez Rufo. «Muito devagar, procurando a protecção do arco da torre e o abrigo dos encaixes e saliências do edifício, foram-se aproximando da imponente coluna da direita. Outro raio iluminou durante alguns instantes a fachada da igreja»

jdact

Primeiro Movimento
«Naquela noite chovia sobre a cidade. Há pelo menos duas horas que as ruas se tinham silenciado e o resplendor inútil dos candeeiros iluminava os silêncios com um bafo anilado que pousava calmamente sobre a calçada nova e a superfície do asfalto. O alvoroço da água a cair, à meia-noite, conferia a Viena o aspecto de uma cidade deserta, como no final de uma guerra que se tenha perdido; uma cidade desolada e temerosa onde a culpa continuava a incomodar depois de três gerações e a velha memória apagava sorrisos com a severidade de um requiem. A espaços, como se fossem espasmos, violentas rajadas de vento de Oeste aumentavam a sensação de frio e alguns relâmpagos, mascarados por entre as nuvens, iluminavam os céus sobre o horizonte. Outubro acabava de começar, mas o ar já se fazia sentir na cara e nas mãos como se os dias estivessem a passar pela metade do Inverno, sem dissimulação. Cautelosos, silenciosos e furtivos, três homens saíram apressados de um Skoda checo estacionado minutos antes na Karlsplatz na esquina com a Karlsgasse, precisamente em frente do flanco direito da Karlskirche, a majestosa igreja erigida em honra de São Carlos Borromeu. Iam vestidos com um fato de neopreno, iguais aos que são usados pelos mergulhadores, mas com o capuz recortado, e tinham coberto a cabeça com gorros pretos de nylon sem brilho. Calçavam sapatilhas desportivas também pretas e os três moviam-se com serenidade e agilidade, demonstrando conhecer com absoluta precisão o que tinham de fazer. Momentos antes tinham sincronizado os seus relógios para as doze em ponto.
O grego Nikos fbi o primeiro a sair do carro. Depois dele saíram o austríaco Wilhelm e o italiano sem nome. Ajustaram o gorro para se protegerem da chuva e foram buscar os respectivos sacos à bagageira. Ao fechar o capô, o italiano levantou a cabeça para o céu por momentos. Nikos também olhou para o alto. Maldita seja! Tinha de ser esta noite!, resmungou o grego com a boca quase fechada e torcida, desenhando um exagerado gesto de desagrado. Agora só falta que um raio nos caia em cima. Silêncio! O italiano voltou-se para ele, irado. Quero silêncio absoluto! Entendido? Mas... Cala-te! E depois não sei do que te queixas, grego: uns quantos trovões até vinham a calhar para não sermos só nós a fazer barulho. Os três homens, transportando cada um deles um saco preto na mão, correram até à parede lateral da Karlskirche e ficaram junto ao muro de pedra. Uma vez ali, asseguraram-se de que ninguém os tinha visto a cruzar a rua e prepararam-se para avançar com toda a rapidez pela taipa até chegarem à fachada principal da igreja. Um primeiro raio iluminou a abóbada do templo: era de estilo romano, com mais de setenta metros de altura; e o clarão do céu afogou-se no lago contíguo no qual se reflectiam os perfis do edifício sacro. Instantes depois um novo relâmpago e o primeiro trovão sacudiram a noite com força. O ribombar tinha começado. Odeio as trovoadas!, amaldiçoou o grego. Cala-te!, o italiano levou um dedo aos lábios e logo indicou com a mão que o seguissem.
Sem deixar a parede chegaram ao frontispício da igreja. O italiano olhou para um lado e para o outro e ordenou-lhes que parassem. À direita erguia-se a Universidade Técnica, fechada e fantasmal a essas horas; e por detrás estendia-se o parque que rodeava o pequeno lago. Todas as ruas próximas continuaram desertas até que, ao fim de alguns segundos, uma furgoneta branca passou lentamente pela Gusshausstrasse com os limpa-pára-brisas a lutar contra a água que naquele momento caía com a intensidade de um aguaceiro de Verão. Com medo de serem descobertos colaram-se à parede como sombras pondo-se a correr e refugiando-se debaixo do átrio de uma das torres quadradas. Era impossível que o condutor daquele veículo tivesse reparado neles, pensou o italiano. Quando a furgoneta branca se perdeu pelo fim da rua, sem parar, o italiano deu ordem de prosseguirem. E depois, em Janeiro, o calor vai sufocar-nos... Cala-te, por…!
Muito devagar, procurando a protecção do arco da torre e o abrigo dos encaixes e saliências do edifício, foram-se aproximando da imponente coluna da direita. Outro raio iluminou durante alguns instantes a fachada da igreja. De onde tinham parado, a visão daquelas colunas tão parecidas com as que Trajano ergueu em Roma, assim como a torre austríaca na qual antes se tinham resguardado e a mesma entrada grega, que imitava a do Pártenon, revelavam-se impressionantes. Os três homens permaneceram a observá-las por um instante, sobressaltados ou talvez apenas rendidos à curiosidade; mas o italiano sem nome reagiu de imediato, percorreu o ultimo percurso do seu trajecto e deteve-se aos pés da coluna. Aqui, ordenou num sussurro. Venham para aqui. Nikos e Wilhelm chegaram ao pé dele e olharam para cima. A coluna, coroada por uma peculiar sacada dourada e uma terminação de zimbório com o tecto abobadado, parecia elevar-se até às portas do céu, onde as nuvens se abraçavam. De seguida voltaram-se para o italiano, confusos. De certeza que é aqui?, o grego franziu os olhos. Sim!, respondeu o italiano, quase ofendido. Aí dentro, no interior desta coluna, existe uma escada em caracol que ascende até à parte mais alta. E aí é precisamente onde nós vamos». In António Gómez Rufo, A Noite do Tamarindo, tradução de Maria Teresa Martins, Saída de Emergência, 2009, ISBN 978-989-637-147-0.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT