domingo, 8 de maio de 2016

O Vaticano contra Cristo. Religiões. Tradução de José A. Neto. I Millenari. «Viaja-se mal quando se faz reserva. A pluralidade que não se deixa reconduzir à unidade é extravio; a unidade que não depende da pluralidade é tirania, afirma Pascal. A cúria romana é tida pelos não conhecedores do seu funcionamento interno»

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Mors Tua Vita Mea
(A tua morte é a minha vida)
«(…) Um semelhante ambiente leva as pessoas a conviver umas ao lado das outras sem se conhecerem a fundo, sem se estimarem reciprocamente, cotovelo com cotovelo fisicamente mas não em comunhão, amando sem entusiasmo mais por motivos racionais que sobrenaturais, com independência burocrática, num contacto asséptico, divididos em categorias, presentes em repartições de conteúdos irreais, apostados em enaltecer os seus métodos e a rebaixar a dignidade do concorrente que lhe faz sombra. Bem diferente é o ensinamento de Cristo, cujo amor teândrico, humano e divino, não apouca mas eleva o homem completo, enriquecendo-o, a partir de dentro, em comunhão com os outros. O Espírito Santo recusa a monotonia das coisas prefabricadas e estandardizadas. Concede a cada um uma vocação diferente, segundo a sua personalidade, mesmo sabendo que tal diversidade possa traduzir-se em permanente risco, levando os homens a afrontar-se como indivíduos e a opor-se uns aos outros. A unidade que o Espírito Santo exige não é a uniformidade, mas a diversidade, permanecendo cada um com a sua própria personalidade, em benefício de todos. Na dinâmica desta troca se constrói e cresce a Igreja para proveito comum.
Todo o homem da Igreja deve, por isso, permanecer unido aos outros na fé, animado pelo mesmo espírito, vivendo na liberdade dos filhos de Deus que opera tudo em todos: a cada um foi dada uma manifestação particular do Espírito para proveito comum: a um a linguagem da sabedoria, a outro a da ciência, àquele a da fé, ao outro o dom da cura, a um o poder dos milagres, ao outro o dom das profecias, a outro o discernimento dos espíritos, ao outro o dom das línguas, ao outro, ainda, o poder de as interpretar. Mas é o mesmo espírito a distribuí-las a todas como quer. A cúria romana, estranho compêndio de praxes não codificadas e não codificáveis, concentrado de sábias tradições mescladas de astúcias diplomáticas, aprecia os seus empregados como desejaria que eles fossem e forma-os como eles não teriam querido ser, isto é, numa vida em que a verdade é acompanhada pela falsidade e o bom senso pelo preconceito e pela suspeita. Mais do que olhar para a virtude da pessoa, olha-se para o seu comportamento exterior. Quando tem de se encontrar uma forma para transmitir a experiência profissional própria à experiência profissional dos outros, num contexto não democrático, a relação faz curto-circuito e emerge, latente ou veladamente, a imposição violenta que suscita o aparecimento da denúncia a qual, por sua vez, aconselha a estar acima dos níveis de vigilância no intercâmbio das relações.
Viaja-se mal quando se faz reserva. A pluralidade que não se deixa reconduzir à unidade é extravio; a unidade que não depende da pluralidade é tirania, afirma Pascal. A cúria romana é tida pelos não conhecedores do seu funcionamento interno como o governo mais perfeito do mundo, onde a justiça social é aplicada acima do que, por direito, seria expectável. Afirmar o contrário poderia parecer uma difamação. O entendimento é, porém, diferente para aqueles que estão por dentro dos segredos e que, embora dando a própria vida e o seu melhor, se vêem ultrapassados e abandonados por outros que avançam sem pudor e com basófia exibicionista. Assim, fazer carreira nesta circunstância, significa simplesmente tramar outros colegas que esperam há mais tempo, significa assestar uma cotovelada oportuna no que está ao lado e é contado entre os primeiros. Competição selvagem, que anula a própria caridade evangélica e o sentido da fraternidade. Tudo isto implica a supressão de qualquer sinal ético-social com a salvaguarda sistemática e única das aparências. É a vontade humana que se faz passar por vontade divina. Quem, atado ao poste, não consegue ter sucesso na vida da cúria torna-se um discriminado nesse contexto mesquinho e conspirativo e não estará jamais em condições de progredir.
Um complexo de inferioridade e uma atrofia da personalidade começam a apoderar-se daquele que é desprezado injustamente, o qual, por isso mesmo, deixa de aspirar ao aperfeiçoamento, no serviço de que está encarregado. O desencanto sobre o seu porvir não o moraliza; pelo contrário, deprime-o, murchando-lhe o crescimento. Quem vive isto por dentro a longo prazo desanima, fecha-se como o caracol no silêncio. Abandonar-se à resignação de que toda a esperança se foi significa enterrar o triunfo da justiça. A vítima presta-se, assim, ao jogo do carrasco, e a cumplicidade, ainda por cima, favorece». In I Millenari, Via col vento in Vaticano, Kaos Edizioni, 1999, O Vaticano contra Cristo, tradução de José A. Neto, Religiões, Casa das Letras, 2005, ISBN 972-46-1170-1.

Cortesia Casa das Letras/JDACT