sábado, 21 de maio de 2016

A Oficina dos Livros Proibidos. Eduardo Roca. «As promessas daquele homem entravam-lhe pelos ouvidos como uma aprazível brisa primaveril, expandindo-se pelos nervos e prolongavam-se até à ponta dos dedos. Havia muito tempo que ninguém era amável com ele»

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Arredores de Colónia. 1430
«(…) Desgrenhado, indefeso, débil e disforme, afastado da família por vontade própria, o rapaz avistou, de uma escarpa, as muralhas de Colónia, a maior cidade das redondezas. Encaminhou-se para lá, resignado, já acostumado ao silêncio que o acompanharia pelo resto da vida. Esperava esconder entre os milhares de almas que a habitavam o seu recém-adquirido aspecto. Pelo menos, entre o exército dos aleijados que povoavam as ruas, ninguém repararia na sua horrível cicatriz. Contava apenas treze anos, mas havia já dois meses que a infância o abandonara, amarrada junto a ele naquele castanheiro. No primeiro dia da sua estada na cidade, calhou dar com as pessoas que saíam da Igreja de São Miguel. Disseram-lhe que ali distribuíam sopa quente a todo aquele que estivesse disposto a aceitá-la. O sustento, conquanto escasso, era suficiente. E assim se foi aguentando. De repente, numa tarde como outra qualquer, uma mão forte e inesperada pousou no seu ombro, sobressaltando-o. Aquele que encontrou atrás si ao voltar-se não era muito mais alto, ia vestido com uma capa longa e um capuz de cor preta e manteve nele o olhar fixo do fundo das suas roupagens. Tinha a pele da mão pálida, quase transparente, sulcada de veias violáceas. Perante aquela aparição, tornaram os fantasmas do bosque que o haviam desfigurado, marginalizando-o para toda a vida. Desta vez, no entanto, decidiu que venderia cara a sua pele. Desatou a correr com todas as suas forças. O manto surrado que o cobria ficou agarrado na mão do estranho.
Corria sem olhar para trás. Pressentia na nuca o perigo, perseguindo-o por entre as ruas estreitas. Depressa os passos se multiplicaram. Não era o eco, nem sequer dos seus próprios passos, uma vez que ia descalço. Quando virou numa rua, deparou-se-lhe um muro alto que lhe cortava a saída. Chegou ao fim e encostou-se à parede como se assim pudesse fazê-la cair. Estava apanhado. Os passos já não ressoavam fortes. Agora eram lentos e pausados. Cinco figuras iguais à anterior apareceram no extremo oposto da calçada. Com os rostos envolvidos pela sombra, aproximavam-se sem pressa. O rapaz tremia, à procura de um buraco por onde fugir. Quando estavam próximos, lançaram-se sobre ele sem sequer perguntar. Agarraram-lhe os braços e puxaram por eles com força, imobilizando-o no solo. Nos olhos do jovem condensou-se o terror dos últimos tempos, das noites envolvidas na dor e no frio, das pancadas do pai quando era mais pequeno, do cheiro da sua própria carne queimada, dos seus pés pegajosos pelo sangue seco e pela lama, o terror do duro despertar do inverno envolto em tremuras. Começou a uivar como um animai que se sabe capturado e prestes a morrer.
Uma sexta sombra aproximou-se e puxou para trás o capuz, enquanto todos os outros se mantinham embuçados nas suas vestimentas. O rosto desta nova figura não era pálido. As feições tinham um desenho suave e os olhos azuis exibiam uma limpidez inabitual. Os gritos do menino foram-se esbatendo e o seu lugar foi ocupado por um sussurro delicado, dirigido só a ele. Lembrou-se da mãe, lá na aldeia, submetida a toda a brutalidade do pai, e umas palavras cálidas acompanharam a recordação: há já algum tempo que te observamos. Não precisas de te preocupar. Há muitos outros como tu. Em breve conhecê-los-ás. O rapaz continuava receoso, apesar de ter deixado de sacudir os braços e as pernas. Respirava com agitação. Sei o injusto que o mundo tem sido contigo e tens de saber que, a partir de agora, estás a salvo. Ninguém voltará. jamais a ferir-te e deixarás de estar só. Confia em mim.
As promessas daquele homem entravam-lhe pelos ouvidos como uma aprazível brisa primaveril, expandindo-se pelos nervos e prolongavam-se até à ponta dos dedos. Havia muito tempo que ninguém era amável com ele, ou pelo menos era o que lhe parecia. Afasta as tuas preocupações, pequeno. De agora em diante, Nikolas Fischer protege-te. Aquela figura selou a promessa com um abraço. Então, as obscuras personagens apartaram-se, deixando-o livre. O pequeno, envolto em lágrimas e ainda trémulo, devolveu o abraço e decidiu confiar nesse homem. Foi-se sossegando a pouco e pouco. Apegou-se ao desconhecido como um náufrago a um escolho. Uma nova família acabava de o adoptar e, mesmo que fosse só por isso, na sua desgraça estaria para sempre agradecido». In Eduardo Roca, A Oficina dos Livros Proibidos, O Conhecimento pode Mudar o Mundo, 2011, tradução de Óscar Mascarenhas, Marcador Editora, 2013, ISBN 978-989-754-015-8.

Cortesia de MarcadorE/JDACT