terça-feira, 17 de maio de 2016

O Nascimento de Vénus Sarah Dunant. «Enquanto, antes, suportara o seu sofrimento com coragem, era, agora, ouvida uivando noite adentro como um animal, um som desesperado que assustava despertando as jovens freiras»

jdact e wikipedia

«Ninguém a vira nua até à sua morte. Era uma norma da ordem que as irmãs não olhassem o corpo humano, nem o seu próprio nem o de qualquer outra pessoa. Uma quantidade considerável de pensamentos era desencadeada por essa observância. Sob as dobras serpeadas dos seus hábitos, cada religiosa usava uma camisa de algodão comprida, peça que nunca tiravam, nem mesmo quando se lavavam, de modo que funcionasse como uma tela e parte de um pano para se enxugarem, assim como camisola. Essa camisa era trocada uma vez por mês (mais no Verão, quando o ar estagnado da Toscana as banhava de suor), e havia instruções minuciosas do procedimento correcto: como deviam manter os olhos firmemente fixados no crucifixo acima de sua cama enquanto retiravam os paramentos. Se alguma permitisse que o seu olhar se desviasse para baixo, o pecado era assunto para o confessionário e, portanto, não para história. Corria um boato de que quando a irmã Lucrezia tinha entrado para o convento, havia levado consigo uma certa vaidade juntamente com sua vocação (o seu dote para a igreja, diziam, incluía uma arca de núpcias prodigamente decorada, cheia de livros e quadros propícios aos cuidados da Polícia Suntuária). Mas aqueles eram tempos em que a irmandade estava propensa a tais acidentes de ofensa e fausto, e, a partir da reforma do convento, as normas tornaram-se mais estritas. Nenhum dos habitantes actuais teria como lembrar-se de algo tão remoto, excepto a reverenda madre, que se havia tornado uma noiva de Cristo por volta da mesma época que Lucrezia, mas que há muito virará as costas a tal mundanismo. Quanto à irmã Lucrezia, nunca falou do seu passado. De facto, nos seus últimos anos de vida, havia falado muito pouco. De que era pia, não havia a menor dúvida. E assim como os seus ossos se recurvaram e se grudaram com a idade, a sua piedade e modéstia tinham-se fundido. De certa maneira, era natural. Mesmo que tivesse sido tentada pela vaidade, que superfície teria encontrado para nela se reflectir? O convento não tinha nenhum espelho, as janelas, nenhum vidro, até mesmo o lago de peixes nos jardins tinha sido projectado com uma fonte no meio, lançando uma saraivada de chuva para impedir qualquer possibilidade de narcisismo na superfície da água. É claro que mesmo nas ordens mais puras, alguma transgressão seria inevitável, e havia tido vezes em que algumas das noviças mais sofisticadas haviam sido pêgas considerando, sub-repticiamente, o seu retrato miniaturizado nas pupilas dos olhos de seus presbíteros. Mas quase sempre este desaparecia quando a imagem de Nosso Senhor se assomava maior.
A irmã Lucrezia parecia não ter olhado directamente para ninguém fazia muitos anos. Havia passado cada vez mais tempo em devoção na sua cela, os seus olhos enuviados com a idade e o amor por Deus. Quando a sua doença se agravou, teve de ser absolvida do trabalho manual, e enquanto as outras estavam trabalhando, ela podia ser encontrada nos jardins ou na horta de ervas que cultivara ocasionalmente. Na semana anterior à sua morte, tinha sido vista ali pela jovem noviça, irmã Garmilla, que se havia alarmado ao deparar-se com a freira anciã não sentada no banco, mas estendida sobre o chão de terra, o corpo sob o hábito distendido com o tamanho do tumor, a sua touca posta de lado e a face virada para os raios de sol do fim da tarde. Esse despojamento era uma violação flagrante das regras, mas nessa época, a doença tinha penetrado tão fundo e a sua dor era tão evidente, que a reverenda madre não conseguiu decidir-se a discipliná-la. Depois, quando as autoridades tinham partido e o corpo, finalmente, sido levado, Carmilla espalhara o boato que repercutia daquele encontro pela mesa do refeitório, contando como o cabelo desgrenhado da freira, livre da touca, tinha refulgido como um halo cinza ao redor de sua cabeça, e como o seu rosto se iluminara de felicidade; só que o sorriso, que brincava nos seus lábios, tinha sido mais de triunfo do que de beatificação.  Naquela última semana da sua vida, quando a dor emanou em ondas cada vez mais profundas, arrastando-a na sua contracorrente, o corredor do lado de fora da sua cela começou a cheirar a morte; um aroma fétido, como se a sua carne já estivesse decompondo-se. O tumor tinha crescido tanto e se tornado tão doloroso que ela não conseguia mais sentar-se na cama. Introduziram médicos na igreja, até mesmo um de Florença (a pele podia ser exposta para aliviar o sofrimento), mas ela recusara todos eles e não dividira a sua agonia com ninguém.
A protuberância permaneceu não somente coberta como completamente oculta. O Verão, então, as oprimia, e o convento fervia de dia e abafava à noite, e, ainda assim, ela ficava deitada sob o cobertor, completamente vestida. O volume do hábito das religiosas era desenhado de modo a esconder qualquer indício de forma ou curva feminina. Cinco anos antes, no maior escândalo que atingira o convento desde os corruptos velhos tempos, uma noviça de catorze anos, vinda de Siena, ocultara nove meses de gravidez tão perfeitamente que só foi descoberta quando a irmã da cozinha se deparou com vestígios de secundinas no canto da adega e, temendo serem as entranhas de algum animal semidevorado, procurou até encontrar o pequenino corpo intumescido, afundado com o peso de um saco de farinha num tonel de vinho da comunhão. Da garota, não havia sinal. Quando questionada depois de ter desmaiado, pela primeira vez, durante as matinas, um mês antes, a irmã Lucrezia confessou que o caroço em seu seio esquerdo havia surgido há algum tempo, a sua energia maligna bolsando contra a sua pele como um pequeno vulcão. Mas desde o começo foi inflexível, declarando que não havia nada a ser feito. Depois de um encontro com a reverenda madre, que fez com que essa se atrasasse para as Vésperas, não se tocou mais no assunto. Afinal, a morte era uma escala temporária numa viagem mais longa, o que, numa casa de Deus, era algo que, mais do que temido, deveria ser recebido com prazer. Nas suas últimas horas, ela foi ficando cada vez mais ensandecida de dor e febre. As fortes concocções de ervas não lhe provocavam nenhum alívio. Enquanto, antes, suportara o seu sofrimento com coragem, era, agora, ouvida uivando noite adentro como um animal, um som desesperado que assustava despertando as jovens freiras nas celas próximas. Junto com o uivo, ouviam-se palavras esporádicas, gritadas em explosões em staccato ou sussurradas como versos de uma oração desvairada; latim, grego e toscano, tudo junto em uma pasta verbal espessa». In Sarah Dunant, O Nascimento de Vénus, 2003, Edições ASA, 2012, ISBN 978-989-231-673-4.

Cortesia de EASA/JDACT