sábado, 21 de maio de 2016

A Misteriosa Chama da Rainha Loana. Umberto Eco. «Apalpava os lençóis, leves, lisos, agradáveis de tocar; menos o cobertor, que espetava um pouco as pontas dos dedos; virava-me e batia a mão no travesseiro, deleitando-me ao ver que afundava dentro dele»

Cortesia de wikipedia e jdact

O mais cruel dos meses
«(…) Ele estava diante de mim, embora ainda o visse como uma sombra. Sentia a cabeça anuviada, como se tivesse acordado depois de ter bebido muito. Creio ter murmurado alguma coisa com dificuldade, como se naquele momento estivesse falando pela primeira vez: posco reposco flagito regem o infinitivo futuro? Cajus régio ejus religio..., é a paz de Augusta ou a defenestração de Praga? e depois: neblina também no trecho apenínico de Autosole, entre Ronco-bilaccio e Barberino dei Mugello... Sorriu-me com compreensão: mas agora abra bem os olhos e tente olhar ao redor. Sabe onde estamos? Agora eu via-o melhor, usava um jaleco, como se diz?, branco. Girei o olhar e consegui mover a cabeça também: o quarto era sóbrio e limpo, uns poucos móveis de metal e cores claras, eu estava na cama, com um tubo enfiado no braço. Da janela, entre as venezianas fechadas, passava uma lâmina de sol, primavera em torno brilha no ar e pelos campos exulta. Sussurrei: estamos..., num hospital e o senhor..., o senhor é um médico. Eu estive mal?
Sim, esteve, depois eu conto-lhe. Mas agora recuperou a consciência. Coragem. Sou o doutor Gratarolo. Desculpe se lhe faço tantas perguntas. Quantos dedos estou mostrando? Isso é uma mão e esses são dedos. São quatro. São quatro? Certo. E quanto é seis vezes seis? Trinta e seis, é óbvio. Os pensamentos ribombavam na minha cabeça mas vinham quase sozinhos. A soma das áreas dos quadrados..., construídos sobre os catetos..., é igual à área do quadrado construído sobre a hipotenusa. Parabéns. Acho que é o teorema de Pitágoras, mas no liceu eu tirava seis em matemática... Pitágoras de Samos. Os elementos de Euclides. A desesperada solidão das paralelas que nunca se encontram. Parece que a sua memória está em óptimo estado. A propósito, e o senhor como se chama? Pois foi aí que eu hesitei. E, no entanto, estava na ponta da língua. Depois de um segundo respondi da maneira mais óbvia. Chamo-me Arthur Gordon Pym. O senhor não se chama assim. Certamente Gordon Pym era um outro. Ele não voltou mais. Tentei chegar a um acordo com o doutor. Podem chamar-me de..., Ismael?
Não, o senhor não se chama Ismael. Faça um esforço. Uma palavra. Como bater contra um muro. Dizer Euclides ou Ismael era fácil, como dizer ambarabá quiqui cocó três corujas no guarda-pó. Dizer quem eu era, ao contrário, era como virar para trás e lá estava o muro. Não, não um muro, tentava explicar: não é que sinta alguma coisa sólida, é como andar na névoa. Como é a névoa?, perguntou. A névoa aos hirtos montes chuviscando sobe e sob o mistral grita e branqueia o mar... Como é a névoa? Não me ponha em apuros, sou apenas um médico. E depois estamos em Abril, não posso mostrá-la. Hoje é dia 25 de Abril. Abril é o mais cruel dos meses. Não sou muito culto mas creio que é uma citação. Podia dizer que hoje é o dia da Libertação. Sabe em que ano estamos? Certamente depois do descobrimento da América... Não recorda nem uma data, uma data qualquer antes do..., seu despertar? Qualquer uma? Mil novecentos e quarenta e cinco, fim da Segunda Guerra Mundial. Muito pouco. Não, hoje é dia 25 de Abril de 1991. O senhor nasceu, parece-me, no final de 1931, e então está chegando aos sessenta anos. Cinquenta e nove e meio, nem isso. Óptimo no que diz respeito à capacidade de cálculo. Olhe, o senhor sofreu, como dizer, um acidente. Conseguiu sair vivo, parabéns. Mas evidentemente tem alguma coisa que ainda não está bem. Uma pequena forma de amnésia retrógrada. Não se preocupe, às vezes duram pouco. Por gentileza, responda ainda algumas perguntas. O senhor é casado? Diga-me o senhor. Sim, é casado, com uma amabilíssima senhora que se chama Paola e que esteve a seu lado dia e noite, só ontem à noite consegui obrigá-la a ir para casa, do contrário desmoronava. Agora que despertou vou chamá-la, mas terei de prepará-la e precisamos fazer ainda algumas verificações. E se eu a confundir com um chapéu? O que disse? Tem um homem que confundiu a mulher com um chapéu.
Ah, o livro de Sacks. Um caso famoso. Vejo que é um leitor actualizado. Mas não é o seu caso, ou já me teria confundido com uma estufa. Não se preocupe, talvez não a reconheça mas não vai confundi-la com um chapéu. Voltemos ao senhor. E então, o senhor chama-se Giambattista Bodoni. Isso não lhe diz nada? Agora a minha memória voava como um planador entre montes e vales, pelo horizonte interminado. Giambattista Bodoni era um célebre tipógrafo. Mas estou seguro de que não sou eu. Eu poderia até ser Napoleão e seria como Bodoni. Por que disse Napoleão? Porque Bodoni era mais ou menos de época napoleónica. Napoleão Bonaparte, nascido na Córsega, primeiro cônsul, desposa Josefina, torna-se imperador, conquista meia Europa, perde em Waterloo, morre em Santa Helena, cinco de Maio de 1821, e ficou como que imóvel. Terei que voltar aqui com uma enciclopédia, mas do que me recordo o senhor lembrou bem. Porém não lembra quem é. F, grave? Para ser honesto, bom não é. Mas não é o primeiro a quem acontece uma coisa assim, conseguiremos sair dessa.
Pediu-me que levantasse a mão direita e tocasse o nariz. Entendia muito bem o que era a direita, e o nariz. Centrado. Mas a sensação era novíssima. Tocar-se o nariz é como ter um olho na ponta do indicador e olhar para o próprio rosto. Eu tenho um nariz. Grararolo bateu no meu joelho e depois aqui e ali na perna e nos pés com uma espécie de martelinho. Os doutores mensuram os reflexos. Parece que os reflexos eram os esperados. No final, sentia-me esgotado, e creio que adormeci. Acordei num lugar e murmurei que parecia a cabina de uma astronave, como nos filmes (que filmes, perguntou Gratarolo, todos, respondi, em geral, depois nomeei Star Trek). Fizeram-me coisas que não entendia com máquinas nunca vistas. Creio que olhavam dentro da minha cabeça, mas eu os deixava agir sem pensar, embalado pelos zumbidos suaves, e de vez em quando adormecia de novo. Mais tarde (ou no dia seguinte?), quando Gratarolo voltou, eu estava explorando a cama. Apalpava os lençóis, leves, lisos, agradáveis de tocar; menos o cobertor, que espetava um pouco as pontas dos dedos; virava-me e batia a mão no travesseiro, deleitando-me ao ver que afundava dentro dele. Fazia chac chac e divertia-me muito. Gratarolo perguntou se conseguia levantar-me da cama. Com a ajuda de uma enfermeira consegui, estava em pé, embora a cabeça girasse. Sentia os pés pressionando o pavimento, e a cabeça no alto. E assim que se está de pé. Sobre um fio esticado. Como a pequena sereia». In Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Rainha Loana, tradução de Eliana Aguiar, 2004, Editora Record, 2005, ISBN 978-850-107-143-9.

Cortesia de Difel/ERecord/JDACT