Cortesia
de wikipedia e jdact
O
mais cruel dos meses
«(…)
Ele estava diante de mim, embora ainda o visse como uma sombra. Sentia a cabeça
anuviada, como se tivesse acordado depois de ter bebido muito. Creio ter
murmurado alguma coisa com dificuldade, como se naquele momento estivesse
falando pela primeira vez: posco reposco flagito regem o infinitivo futuro?
Cajus régio ejus religio..., é a paz de Augusta ou a defenestração de Praga?
e depois: neblina também no trecho apenínico de Autosole, entre Ronco-bilaccio
e Barberino dei Mugello... Sorriu-me com compreensão: mas agora abra bem os
olhos e tente olhar ao redor. Sabe onde estamos? Agora eu via-o melhor, usava
um jaleco, como se diz?, branco. Girei o olhar e consegui mover a cabeça
também: o quarto era sóbrio e limpo, uns poucos móveis de metal e cores claras,
eu estava na cama, com um tubo enfiado no braço. Da janela, entre as venezianas
fechadas, passava uma lâmina de sol, primavera em torno brilha no ar e pelos
campos exulta. Sussurrei: estamos..., num hospital e o senhor..., o senhor é um
médico. Eu estive mal?
Sim,
esteve, depois eu conto-lhe. Mas agora recuperou a consciência. Coragem. Sou o
doutor Gratarolo. Desculpe se lhe faço tantas perguntas. Quantos dedos estou mostrando?
Isso é uma mão e esses são dedos. São quatro. São quatro? Certo. E quanto é
seis vezes seis? Trinta e seis, é óbvio. Os pensamentos ribombavam na minha cabeça
mas vinham quase sozinhos. A soma das áreas dos quadrados..., construídos
sobre os catetos..., é igual à área do quadrado construído sobre a hipotenusa.
Parabéns. Acho que é o teorema de Pitágoras, mas no liceu eu tirava seis em
matemática... Pitágoras de Samos. Os elementos de Euclides. A desesperada
solidão das paralelas que nunca se encontram. Parece que a sua memória está em
óptimo estado. A propósito, e o senhor como se chama? Pois foi aí que eu
hesitei. E, no entanto, estava na ponta da língua. Depois de um segundo
respondi da maneira mais óbvia. Chamo-me Arthur Gordon Pym. O senhor não se
chama assim. Certamente Gordon Pym era um outro. Ele não voltou mais. Tentei chegar
a um acordo com o doutor. Podem chamar-me de..., Ismael?
Não,
o senhor não se chama Ismael. Faça um esforço. Uma palavra. Como bater contra
um muro. Dizer Euclides ou Ismael era fácil, como dizer ambarabá quiqui cocó
três corujas no guarda-pó. Dizer quem eu era, ao contrário, era como virar para
trás e lá estava o muro. Não, não um muro, tentava explicar: não é que sinta
alguma coisa sólida, é como andar na névoa. Como é a névoa?, perguntou. A névoa
aos hirtos montes chuviscando sobe e sob o mistral grita e branqueia o mar...
Como é a névoa? Não me ponha em apuros, sou apenas um médico. E depois estamos
em Abril, não posso mostrá-la. Hoje é dia 25 de Abril. Abril é o mais cruel dos
meses. Não sou muito culto mas creio que é uma citação. Podia dizer que hoje é
o dia da Libertação. Sabe em que ano estamos? Certamente depois do
descobrimento da América... Não recorda nem uma data, uma data qualquer antes
do..., seu despertar? Qualquer uma? Mil novecentos e quarenta e cinco, fim da
Segunda Guerra Mundial. Muito pouco. Não, hoje é dia 25 de Abril de 1991. O
senhor nasceu, parece-me, no final de 1931, e então está chegando aos sessenta
anos. Cinquenta e nove e meio, nem isso. Óptimo no que diz respeito à
capacidade de cálculo. Olhe, o senhor sofreu, como dizer, um acidente.
Conseguiu sair vivo, parabéns. Mas evidentemente tem alguma coisa que ainda não
está bem. Uma pequena forma de amnésia retrógrada. Não se preocupe, às vezes
duram pouco. Por gentileza, responda ainda algumas perguntas. O senhor é
casado? Diga-me o senhor. Sim, é casado, com uma amabilíssima senhora que se
chama Paola e que esteve a seu lado dia e noite, só ontem à noite consegui
obrigá-la a ir para casa, do contrário desmoronava. Agora que despertou vou
chamá-la, mas terei de prepará-la e precisamos fazer ainda algumas
verificações. E se eu a confundir com um chapéu? O que disse? Tem um homem que
confundiu a mulher com um chapéu.
Ah,
o livro de Sacks. Um caso famoso. Vejo que é um leitor actualizado. Mas não é o
seu caso, ou já me teria confundido com uma estufa. Não se preocupe, talvez não
a reconheça mas não vai confundi-la com um chapéu. Voltemos ao senhor. E então,
o senhor chama-se Giambattista Bodoni. Isso não lhe diz nada? Agora a minha
memória voava como um planador entre montes e vales, pelo horizonte
interminado. Giambattista Bodoni era um célebre tipógrafo. Mas estou seguro de
que não sou eu. Eu poderia até ser Napoleão e seria como Bodoni. Por que disse
Napoleão? Porque Bodoni era mais ou menos de época napoleónica. Napoleão
Bonaparte, nascido na Córsega, primeiro cônsul, desposa Josefina, torna-se
imperador, conquista meia Europa, perde em Waterloo, morre em Santa Helena,
cinco de Maio de 1821, e ficou como que imóvel. Terei que voltar aqui com uma
enciclopédia, mas do que me recordo o senhor lembrou bem. Porém não lembra quem
é. F, grave? Para ser honesto, bom não é. Mas não é o primeiro a quem acontece
uma coisa assim, conseguiremos sair dessa.
Pediu-me
que levantasse a mão direita e tocasse o nariz. Entendia muito bem o que era a
direita, e o nariz. Centrado. Mas a sensação era novíssima. Tocar-se o nariz é
como ter um olho na ponta do indicador e olhar para o próprio rosto. Eu tenho
um nariz. Grararolo bateu no meu joelho e depois aqui e ali na perna e nos pés
com uma espécie de martelinho. Os doutores mensuram os reflexos. Parece que os
reflexos eram os esperados. No final, sentia-me esgotado, e creio que adormeci.
Acordei num lugar e murmurei que parecia a cabina de uma astronave, como nos
filmes (que filmes, perguntou Gratarolo, todos, respondi, em geral, depois
nomeei Star Trek). Fizeram-me coisas que não entendia com máquinas nunca
vistas. Creio que olhavam dentro da minha cabeça, mas eu os deixava agir sem
pensar, embalado pelos zumbidos suaves, e de vez em quando adormecia de novo. Mais
tarde (ou no dia seguinte?), quando Gratarolo voltou, eu estava explorando a
cama. Apalpava os lençóis, leves, lisos, agradáveis de tocar; menos o cobertor,
que espetava um pouco as pontas dos dedos; virava-me e batia a mão no
travesseiro, deleitando-me ao ver que afundava dentro dele. Fazia chac chac e divertia-me
muito. Gratarolo perguntou se conseguia levantar-me da cama. Com a ajuda de uma
enfermeira consegui, estava em pé, embora a cabeça girasse. Sentia os pés
pressionando o pavimento, e a cabeça no alto. E assim que se está de pé. Sobre
um fio esticado. Como a pequena sereia». In Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Rainha
Loana, tradução de Eliana Aguiar, 2004, Editora Record, 2005, ISBN 978-850-107-143-9.
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