sexta-feira, 27 de maio de 2016

O Bibliotecário. AM Dean. «Al chegou mais perto da secretária. Ela era como imaginava a mesa de um velho professor: um candeeiro verde-escuro, porta-canetas de bronze, papel mata-borrão desbotado…»

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«(…) Dois pequenos orifícios perfuravam o couro da velha poltrona, marca dos tiros fatais que tinham tirado a vida de Arno Holmstrand. Os tiros foram dados bem no meio do tronco, com pouco mais de dois centímetros de distância entre si. Sinais que denunciavam o trabalho de um profissional. Agora, com o corpo removido, o detective podia retraçar a trajectória das balas a partir dos dois buracos deixados no estofamento da poltrona. O assassino tinha parado na entrada do gabinete; ele não tinha mais que 1,70m de altura. A vítima estava sentada, de cara para o seu agressor. O detective Al Johnson observava os técnicos que vasculhavam a cena do crime. Uma fina pinça, manuseada com habilidade pelas mãos enluvadas de um homem que obviamente já tinha feito aquilo antes, extraíram uma bala de um dos orifícios da poltrona. Talvez um calibre 38, cogitou Johnson, embora não possuísse conhecimentos suficientes para fazer tal afirmação. Aquele era o terreno dos técnicos em balística. Para ele, bastava saber que se tratava de um revólver, que aquilo era sem dúvida um assassinato, e que claramente fora perpetrado por um profissional. Coisas que ele já vira antes.
O corpo fora levado para a morgue às primeiras horas da manhã. Três ferimentos de bala no total. O do lado direito viera primeiro, provavelmente quando a vítima ainda estava fora do gabinete. Johnson perscrutou o rastro de sangue que se estendia até ao interior da sala. O médico forense suspeitava que o primeiro ferimento já teria sido fatal, mas a vítima tinha sobrevivido tempo suficiente para passar pela porta cambaleando, o detective ergueu-se do chão tentando reconstituir os passos hipotéticos, passar pela porta e chegar até à mesa. Para quê? Havia um telefone sobre a mesa, mas nenhum sinal de que fora usado e ninguém telefonara para o número de emergência até à manhã seguinte, quando o contínuo descobrira o cadáver. Outro perito procurava impressões digitais na moldura da porta e um terceiro fazia o mesmo,mas na secretária. Dois sujeitos uniformizados tiravam fotos, o parceiro de Johnson entrevistava os funcionários da noite no corredor, e pelo menos seis outras pessoas movimentavam-se pela sala. Não foi a primeira vez que Al se surpreendeu, diante da vibração de vida que pode haver na cena de um crime. Era um dos estranhos paradoxos do seu trabalho.
Al chegou mais perto da secretária. Ela era como imaginava a mesa de um velho professor: um candeeiro verde-escuro, porta-canetas de bronze, papel mata-borrão desbotado e um computador que parecia já estar ultrapassado desde a época em que fora fabricado. Uma bandeja de couro continha cartas antigas, cada uma meticulosamente aberta com abre-cartas de marfim, que repousava sobre elas. Abre-cartas de marfim, torre de marfim…, o ambiente era um conjunto de símbolos de uma afirmação cultural. No centro da mesa, havia um grande livro de capa dura repleto de fotografias. Estava aberto, mais ou menos na página central. O detective aproximou-se e correu levemente a mão enluvada pela superfície das páginas. Por baixo do látex cheio de talco, os seus dedos calejados detiveram-se ao tactear numas bordas inesperadamente rugosas. A encadernação no centro do livro escondia uma irregularidade no papel, no ponto onde algumas páginas haviam sido evidentemente arrancadas pouco tempo antes. Um flash chamou a sua atenção no momento em que um jovem perito da equipe de Homicídios tirou uma foto do livro, juntamente com a mão de Al.
Al imaginou a cena. Um homem, atingido por um tiro no peito, caminha com dificuldade de volta à sua sala para arrancar algumas páginas de um livro. Aquilo fazia pouco sentido. Mas também, assassinatos quase nunca faziam muito sentido. Outra foto, desta vez a objectiva apontava para os seus pés. Al olhou para o cesto do lixo, repleto de papéis enegrecidos. De joelhos, um jovem bem trajado, que revolvia os restos carbonizados. Belo fato, pensou Al com os seus botões, encolerizando-se de imediato. Um rapaz das agendas do governo, era só o que faltava. Não era fã dos grandes filmes comerciais de Hollywood, mas achava que eles representavam muito bem a perturbação causada toda vez que várias agências de segurança disputavam um caso. E os detectives das equipes locais nunca vestiam fatos elegantes. Não sabia de onde o rapaz era, mas independentemente disso, Al já sentia que a situação seria terrivelmente frustrante. Os professores de História queimam sempre os seus papéis?, perguntou o desconhecido sem levantar os olhos do que estava a fazer.
Não faço ideia rapaz. O tipo do fato titubeou ao escutar a última palavra, visivelmente contrariado por lhe recordarem a sua juventude. Levantou-se bem devagar, forçando-se a recuperar a compostura. Não é grande coisa. Só algumas páginas amassadas, queimadas todas ao mesmo tempo. Al apontou o livro sobre a secretária. Algumas páginas foram arrancadas dali, disse, indicando as bordas rasgadas do álbum. Foram três, ao julgar pelo número da página anterior e da posterior. São as que temos aqui, confirmou o jovemrapaz, indicando as folhas queimadas no interior do cesto dos papéis.  Não entendo, disse Al. O velho leva um tiro no corredor, mas consegue vir cambaleando de volta ao seu gabinete e sentar-se à secretária. Há um telefone bem à sua frente, porém nem lhe tocou. Não pede socorro. Com papel e canetas por todo lado, não escreve nada. Em vez disso, abre um livro com fotos, arranca umas páginas e queimou-as». In AM Dean, O Bibliotecário, 2012, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-124-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT