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«Estávamos
a um passo do que já fora um campo de concentração. Mas, quando dávamos
indicações, não mencionávamos o facto, a não ser que fosse absolutamente
necessário. O hotel, do lado oriental da cidade medieval de Dachau, situava-se numa
rua secundária, empedrada e bordejada de álamos, separada do antigo KZ, agora uma
colónia residencial para refugiados alemães e checos, que fugiam dos comunistas,
pelo canal do rio Würm. Era uma construção em tabique, uma vivenda suburbana de
três andares, com um telhado de quatro águas muito inclinado e uma varanda a toda
a volta, no primeiro andar, a transbordar de gerânios. Era o tipo de sítio que já
vira melhores dias. Desde que os nazis e, posteriormente, os prisioneiros de
guerra alemães tinham partido de Dachau, já ninguém aparecia no hotel, excepto
talvez um ou outro engenheiro civil que vinha ajudar a supervisionar a eliminação
parcial de um KZ onde eu próprio, durante várias semanas desagradáveis, no Verão
de 1936, tinha sido recluso. Os representantes eleitos do povo bávaro não viam a
necessidade de preservar as ruínas do campo para visitantes presentes ou
futuros. No entanto, a maioria dos residentes da vila, incluindo eu próprio, era
de opinião de que o campo oferecia a única oportunidade de fazer entrar receitas
em Dachau. Mas as oportunidades de tal acontecer eram remotas, enquanto o memorial
continuasse por construir e uma vala comum, onde mais de cinco mil pessoas tinham
sido enterradas, por assinalar. Os visitantes teimavam em não aparecer e, apesar
dos meus esforços com os gerânios, o hotel começou a decair. Assim, quando um Buick
Roadmaster novo, de duas portas, estacionou no nosso pequeno caminho de tijolo,
disse para mim próprio que os dois homens estavam provavelmente perdidos e
tinham parado para pedir indicações para o quartel do Terceiro Exército americano,
se bem que fosse difícil não dar com o sítio.
O condutor
apeou-se do Buick, espreguiçou-se como uma criança e levantou os olhos para o
céu, como se tivesse ficado surpreendido por ouvir cantar os pássaros num lugar
como Dachau. Eu próprio pensava com frequência o mesmo. O passageiro deixou-se estar
no carro, a olhar em frente e provavelmente a desejar estar noutro sítio.
Compreendia-o muito bem e, se aquele sedan verde lustroso fosse meu, teria decerto
continuado a viagem. Nenhum dos homens usava uniforme, mas o condutor estava, no
geral, mais bem vestido do que o passageiro. Mais bem vestido, mais bem alimentado
e de melhor saúde, ou, pelo menos, assim me pareceu. Subiu os degraus de pedra num
bonito sapateado e entrou pela porta principal como se fosse dono da casa. Dei por
mim a acenar educadamente com a cabeça ao homem bronzeado, sem chapéu e de óculos,
cujo rosto lembrava o de um mestre do xadrez que tinha considera do todos os lances
possíveis. Não parecia minimamente perdido.
O senhor
é o proprietário?, perguntou, assim que transpôs a porta, sem se esforçar muito
por falar num bom sotaque alemão e sem se dignar a olhar para mim, enquanto esperava
pela resposta. Olhou distraidamente à sua volta, para a decoração do hotel, que
se destinava a dar ao sítio uma atmosfera mais caseira, o que só acontecia quando
se partilhava o quarto com uma leiteira. Havia chocalhos de vacas, rocas de fiar,
pentes de cânhamo, ancinhos, pedras de amolar e um grande pipo de madeira sobre
o qual repousava o Süddeutsche Zeitung com dois dias e um exemplar verdadeiramente
antigo do Münchener Stadtanzeiger. Nas paredes, viam-se algumas aguarelas de cenas
rústicas locais, de uma época em que pintores melhores do que Hitler tinham chegado
a Dachau, atraídos pelo encanto do rio Amper e de Dachauer Moos, um vasto pântano
agora praticamente drenado e transformado em terras de lavoura. Era tudo tão kitsch
como um relógio de cuco em pechisbeque. Pode dizer-se que sou o proprietário, respondi.
Pelo menos enquanto a minha mulher está doente. Está hospitalizada. Em Munique.
Nada de grave, espero, replicou o americano, continuando a não olhar para mim. Parecia
mais interessado nas aguarelas do que na saúde da minha mulher. Imagino que esteja
à procura da base militar americana, no antigo KZ, arrisquei. Saiu da estrada quando
devia ter atravessado a ponte sobre o canal do rio. Fica a menos de cem metros daqui.
Do outro lado daquelas árvores». In Philip Kerr, O Projecto Janus, 2006,
tradução de Isabel Alves, Porto Editora, Porto, 2010, ISBN 978-972-004-298-1.
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