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Acabados de sair do palácio de justiça do Châtelet, sentem-se ambos imediatamente
envolvidos pela extraordinária animação que ali reina, pelo engarrafamento permanente,
o barulho, a lama, o odor desagradável da cidade. Os esgotos a céu aberto, os montes
de excrementos e os porcos de focinho enfiado na porcaria fazem das luvas perfumadas
ou dos ramos de violeta que lhes passam pelo nariz remédios indispensáveis contra
a náusea. Mas o marquês esquece-se de tudo: já não tenho irmãos, diz com ar espantado.
Roger, o mais velho, morreu durante o cerco de Mardyck, Just de Pardaillan morreu
quando cumpria o serviço militar e o marquês d'Antin foi morto ontem num
duelo... Já não tenho futuro marido, responde a bela, como num eco. O hálito que
expira é mais puro que o que inspira. Noirmoutier, é mais que evidente, prefere
salvar a pele do que preocupar-se comigo. Tem um perfil orgulhoso e nobre. Por
baixo do capuz do casaco saem-lhe mechas rebeldes de cabelos louros. Tem as narinas
móveis como asas de pássaro. A boca, sorridente e com um quê de sedutor,
enlouquece o marquês, deixa-o em fogo, tal como os raios de sol que deslizam por
entre as árvores...
A dupla
perda aproxima-os. À medida que se vão cruzando com vendedores de canções, canções
para beber, para divertimento à mesa, canções para dançar ou de actualidade, os
dois jovens falam do defunto, do noivo no exílio, felicitam-se reciprocamente, confortam-se,
consolam-se. Cantores de rua vindos da Sabóia clamam: devolve-me o pardal, ó
ruiva, ah, como o mundo é grande. Ainda é mais terrível, diz a bela abanando a
cabeça, porque quando me deram a notícia, na Rue Saint-Honoré, estava
precisamente no meio de uma prova do fato de noiva que iria vestir no domingo que
vem. Não sei o que fazer com ele. Seria pena que se estragasse... Um
saltimbanco engole água e cospe-a em seguida envolta em várias cores e odores.
Digo
isto, atrapalha-se o marquês, sobretudo por causa das traças. A verdade é que por
vezes arrumamos roupas velhas em arcas e, mais tarde, quando voltamos a desdobrá-las,
estão já todas estragadas, roídas, cheias de buracos de traça... Ficamos então cheios
de pena por nunca as termos voltado a vestir... A menina dos sapatos pontiagudos
com saltos altíssimos contempla aquele gascão atrapalhado, divertido e dotado
de certa sedução: estareis por acaso a tentar dizer-me que... Como só uma vez
na vida se ama. À porta da loja, um pasteleiro dá um jeito na vestimenta, lenço
à laia de gravata, bóina com grande laço e um raminho de flores para atrair as senhoras.
A noiva abandonada pousa familiarmente a cabeça no ombro do marquês. Este, que
é frequentador assíduo dos círculos de lansquené e das mesas de jogos de cartas
dos palacetes do Marais, julga ter ao seu alcance o mais belo jogo do mundo.
Atordoado e perdido no meio de uma praça invadida por carroças e eclesiásticos,
coça a cabeleira postiça. Não será isto o Paraíso? Nunca, caro senhor: no Paraíso
não haveria tantos bispos! Desatam a rir. No que lhe diz respeito, o marquês julga
ter recebido a bênção de um anjo e ergue os olhos para o céu». In Jean
Teulé, Montespan, Prémio Maison de La Presse 2008, Grande Prémio Palatine du
Roman Historique, colecção Tempos Modernos, Guerra e Paz Editores, Lisboa,
2009, ISBN 978-989-8174-28-4.
Cortesia
de Guerra e Paz/JDACT