terça-feira, 3 de maio de 2016

O Cheirinho do Amor. Reinaldo Moraes. «Ponto para mim. E o secretário, na sua calorosa informalidade, tinha ido com a minha cara, pelo jeito. Não a ponto de me convidar para tomar “mojitos” em Cuba…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Crónicas safadas
«(…) O secretário, de camisa social e gravata, o casaco repousava pendurado num cabide ao nível do chão, como a indicar que, apesar do estado autocrático, era dali mesmo, do chão pisado pelos humanos de plantão na crosta terrestre que ele provinha, o secretário, eu dizia, tirava roliças baforadas de um puro legítimo (presente pessoal do Fidel, segundo me contara antes o Prata), aguardando a exposição do meu projectinho oportunista, que outro não era senão uma espécie de Embraletras financiada pelo governo paulista. Ou melhor, uma Paulisteratur, como sugeri, meio de sarro, meio a sério, inspirando-me na famigerada Paulipetro do Maluf, o governador anterior, que havia, segundo uma torrente de denúncias na imprensa, torrado algo como dois bilhõezinhos de dólares, em valores da época, sacos dos cofres do estado de São Paulo, quando era governador biónico, sem tirar do solo um único dedal de petróleo, mas engordando as contas bancárias de muitos correligionários, além da sua própria. Eu via, pela cara dele, que o secretário não se tinha emocionado em demasia com a minha Paulisteratur, nome desgraçado de ruim. Mesmo assim, perorava em defesa do meu projecto, disparando perdigotos castanhos de cafezinho para cima da barba do secretário do outro lado da mesa, os quais não chegavam a atingi-la, barrados que eram pela espessa cortina de fumaça cubana. O meu principal argumento era: se a curriola do cinema podia, se a turma do teatro podia, se até artistas plásticos e gente de circo podiam viver de verbas públicas, visto que havia na secretaria departamentos específicos para o fomento dessas artes todas, porque escritores não poderiam também mamar nas burras públicas? E sendo que custear a escrita de um livro por um ou dois anos sairia muito mais barato do que fazer um filme nacional de arte que, óptimo ou ruim, quase ninguém ia ver nos cinemas, com raríssimas excepções. Bastava, pois, uma canetada certeira do fumegante secretário da Cultura para eu me ver de alguma forma embraletrado. Ou paulisteraturado (putz!). Pagaria umas contas. Comeria umas pizzas. Teria mais tempo para escrever. Ia ser bacana. O meu interesse ali tinha dois alvos simultâneos, mas excludentes. Eu tanto aspirava a ser beneficiário de uma tal mamata quanto insinuava pró Fernando Morais que eu mesminho poderia vir a ser o gestor do programa de bolsas literárias dentro da secretaria, o que vingasse primeiro. Minhas chances me pareciam razoáveis ali. Afinal, meu amigo Prata, amado e festejado dramaturgo, telenovelista e cronista, que administrava o departamento de fomento ao teatro da secretaria, tinha-me levado pela mão até o titular da pasta, que me concedera aquela audiência. Ponto para mim. E o secretário, na sua calorosa informalidade, tinha ido com a minha cara, pelo jeito. Não a ponto de me convidar para tomar mojitos em Cuba com ele, na sua próxima viagem à ilha do Fidel, mas, de qualquer maneira, começava a prestar um pouco mais de atenção na minha exposição. Por um momento, tive a impressão de que a minha conversinha fiada de Paulisteratur tinha despertado no homem algum tipo de conexão com outras caraminholas lá da cabeça dele. Em outro momento, achei que o próprio cabide com o casaco do secretário me acenava com a sua penca de hastes vagas, como que me convidando a me enganchar numa delas. Allea jacta est, suspirei no meu parco latim, ao término da minha arenga. Depois de deixar a minha proposta defumando por uns instantes no fumacé do seu charutão cubano, o secretário puxou um pigarrinho burocrático e nos contou que, por grande coincidência, andava cozinhando uma ideia bastante aparentada com a minha. A coisa toda tinha a ver com o falecido arquitecto, designer, artista plástico, escritor e grande provocador, Flávio Carvalho, o mesmo que tinha andado na contramão de uma procissão no centro de São Paulo, nos anos 50, e de chapéu ainda por cima, atitude considerada sacrílega na época, o que quase lhe valera um linchamento. Noutra ocasião, o artista dera umas bandas no movimentado centro comercial paulistano trajando uma indumentária new look, como ele chamava a sua proposta de roupa para o homem tropical, composta de saiote largo, blusa larga, mangas abertas no sovaco para ventilar e sandálias vazadas que lhe davam, no conjunto, um divertido ar de espadachim renascentista, para grande escândalo das virilidades auriverdes». In Reinaldo Moraes, O Cheirinho do Amor, Editora Alfaguara/Objectiva, 2014, 978-857-962-338-7.

Cortesia de Alfaguara/JDACT