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«O maior
dos sinos da Catedral de Notre Dame dobrou o meio-dia no momento em que Hugo alcançava
o final da ponte, o ar frio parecendo colar-se ao último ressoar por mais tempo
do que o habitual. Estacou e olhou para o outro lado da movimentada rua de Paris
onde se situava o Café Panis. As luzes amarelas por cima das janelas atraíam-no
ao mesmo tempo que figuras indistintas se movimentavam no seu interior, clientes
escolhendo mesas e empregados passarinhando de um lado para o outro como dançarinos.
Um café quente era tentador, porém, aquele era o primeiro dia de umas férias
que Hugo não pedira. Sem nada para fazer ou lugar para onde ir, não lhe
apetecia sentar-se sozinho numa mesa a pensar nesse assunto. Endireitou os ombros
para enfrentar o vento e virou à direita, deixando o café para trás, e dirigindo-se
para norte junto ao rio. Olhou por cima do parapeito enquanto caminhava, o rugido
de uma lancha que subia o rio e o das hélices do motor que agitavam as águas gélidas
do Sena chamaram-lhe a atenção. Em dias frios como aquele questionava-se durante
quanto tempo poderia um homem sobreviver nas águas oleaginosas do rio, debatendo-se
contra a corrente enganadoramente forte antes de sucumbir ao seu gélido abraço.
Era um pensamento deprimente que se apressou a esquecer. Afinal, estava em Paris;
havia demasiado tráfego ribeirinho, demasiadas pessoas como ele que admiravam o
rio pela sua multiplicidade de pontes, para um homem bracejante passar despercebido
durante muito tempo. Cinco minutos mais tarde avistou uma banca de livros à beira-rio;
quatro caixas de metal verdes aferrolhadas ao muro baixo e atafulhadas de livros,
as suas coloridas lombadas abertas em leque nas prateleiras como as penas de uma
ave para atrair os transeuntes. O proprietário da banca encontrava-se inclinado
sobre uma caixa, a bainha do seu puído casaco cinzento a roçar o pavimento. Um dos
atacadores havia-se desapertado, mas o homem ignorava-o, apesar de os seus
dedos esgaravatarem os postais ilustrados, a apenas alguns centímetros de distância.
Uma onda
de gritos obrigou o vendedor a endireitar-se e ambos os homens olharam na direcção
das vozes, que soavam de uma banca a cerca de cinquenta metros, do outro lado
da entrada para a Pont Neuf. Um homem, atarracado e corpulento, espetou um dedo
e gritou para a dona da banca, uma mulher de faces rubras, agasalhada contra o frio
e decidida a responder na mesma moeda. O idoso abanou a cabeça e voltou a sua
atenção para a caixa. Hugo pigarreou suavemente. Oui, monsieur? A voz do vendedor
era áspera, porém, quando olhou para cima e viu Hugo, deixou fugir um sorriso. Ah,
é o senhor. Por onde tem andado, mon ami? Salut, Max. Hugo descalçou uma luva e
apertou a mão estendida de Max, quente apesar do frio que se fazia sentir. Falaram
em francês, ainda que o homem mais velho soubesse falar inglês bem o suficiente
quando lhe interessava, como quando as bonitas jovens americanas paravam diante
da sua banca de livros. Qual a razão do espalhafato?, indagou Hugo. Max não respondeu
e voltaram-se para assistir à cena. A mulher agitava um braço como que a dizer ao
homem entroncado que a deixasse em paz. A resposta do homem chocou Hugo:
pôs-lhe a mão no pulso e torceu-o até a fazer rodopiar e, no mesmo movimento, deu-lhe
um pontapé nas pernas e desequilibrou-a. A mulher caiu de joelhos e soltou um gemido
ao mesmo tempo que atirava a cabeça para trás em sofrimento. Hugo deu um passo em
frente, mas sentiu uma mão forte a puxá-lo para trás.
Non,
disse Max. Não se meta. Une affaire domestique. Hugo afastou-o. Ela precisa de
ajuda. Fique aqui. Non, insistiu Max, agarrando o braço de Hugo com uma força que
o americano sentiu mesmo sob o casaco de inverno. Deixe-a, Hugo. Ela não precisa
da sua ajuda, acredite no que lhe digo. Porque não? Quem diabo é ele? Hugo
sentiu a tensão crescer no seu corpo e lutou contra o desejo de a libertar do
fanfarrão do outro lado da rua. Qualquer coisa no apelo de Max levara-o a pensar
duas vezes. Envolver-se podia piorar as coisas. O que se passa, Max?, repetiu. O
francês fitou-o durante algum tempo, depois soltou o braço de Hugo e desviou o
olhar. O homem mais velho virou-se para a sua banca, pegou num livro e pôs os óculos
para conseguir ler a capa. Hugo virou-se para o encarar e reparou que lhe faltava
a lente esquerda. Bolas, Max. Diga-me que aquele tipo não lhe fez uma visita. A
mim? Não. Max limpou o nariz abatatado e bexigoso com a manga do casaco, mas
não olhou Hugo nos olhos. Porque haveria de o fazer?
Diga-me
o Max. O cais era um íman para gente doida, Hugo sabia-o, atraída como mosquitos
pela água e pelos turistas que circulavam pelo coração da cidade. Por nenhuma razão.
Se está preocupado com os meus óculos, fique a saber que os deixei cair, apenas
isso. Max olhou, por fim, para Hugo e o sorriso regressou. Sim, estou a ficar
velho e desastrado, mas ainda consigo tomar conta de mim. De qualquer maneira, o
seu trabalho é garantir a segurança do seu embaixador, proteger a embaixada, e não
preocupar-se com velhos como eu. Estou de folga, posso preocupar-me com quem quiser.
Max voltou a agarrar o braço de Hugo, desta vez de forma tranquilizadora. Estou
bem. Está tudo bem. D'accord. Se o diz. Hugo olhou para o outro lado da rua e viu
a mulher já de pé, os braços do homem a agitarem-se em volta dela, mas sem lhe
tocar. Relutantemente, Hugo decidiu ignorar o assunto. Virou-se para os livros
em exposição. É assim que toma conta de si, explorando turistas, oui? Tem algo
que valha a pena comprar? Preciso de um presente». In Mark Pryor, O Livreiro, 2012,
tradução de Dina Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-062-1.
Cortesia
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