quinta-feira, 5 de maio de 2016

O Livreiro. Mark Pryor. «O que se passa, Max?, repetiu. O francês fitou-o durante algum tempo, depois soltou o braço de Hugo e desviou o olhar. O homem mais velho virou-se para a sua banca, pegou num livro e pôs os óculos»


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«O maior dos sinos da Catedral de Notre Dame dobrou o meio-dia no momento em que Hugo alcançava o final da ponte, o ar frio parecendo colar-se ao último ressoar por mais tempo do que o habitual. Estacou e olhou para o outro lado da movimentada rua de Paris onde se situava o Café Panis. As luzes amarelas por cima das janelas atraíam-no ao mesmo tempo que figuras indistintas se movimentavam no seu interior, clientes escolhendo mesas e empregados passarinhando de um lado para o outro como dançarinos. Um café quente era tentador, porém, aquele era o primeiro dia de umas férias que Hugo não pedira. Sem nada para fazer ou lugar para onde ir, não lhe apetecia sentar-se sozinho numa mesa a pensar nesse assunto. Endireitou os ombros para enfrentar o vento e virou à direita, deixando o café para trás, e dirigindo-se para norte junto ao rio. Olhou por cima do parapeito enquanto caminhava, o rugido de uma lancha que subia o rio e o das hélices do motor que agitavam as águas gélidas do Sena chamaram-lhe a atenção. Em dias frios como aquele questionava-se durante quanto tempo poderia um homem sobreviver nas águas oleaginosas do rio, debatendo-se contra a corrente enganadoramente forte antes de sucumbir ao seu gélido abraço. Era um pensamento deprimente que se apressou a esquecer. Afinal, estava em Paris; havia demasiado tráfego ribeirinho, demasiadas pessoas como ele que admiravam o rio pela sua multiplicidade de pontes, para um homem bracejante passar despercebido durante muito tempo. Cinco minutos mais tarde avistou uma banca de livros à beira-rio; quatro caixas de metal verdes aferrolhadas ao muro baixo e atafulhadas de livros, as suas coloridas lombadas abertas em leque nas prateleiras como as penas de uma ave para atrair os transeuntes. O proprietário da banca encontrava-se inclinado sobre uma caixa, a bainha do seu puído casaco cinzento a roçar o pavimento. Um dos atacadores havia-se desapertado, mas o homem ignorava-o, apesar de os seus dedos esgaravatarem os postais ilustrados, a apenas alguns centímetros de distância.
Uma onda de gritos obrigou o vendedor a endireitar-se e ambos os homens olharam na direcção das vozes, que soavam de uma banca a cerca de cinquenta metros, do outro lado da entrada para a Pont Neuf. Um homem, atarracado e corpulento, espetou um dedo e gritou para a dona da banca, uma mulher de faces rubras, agasalhada contra o frio e decidida a responder na mesma moeda. O idoso abanou a cabeça e voltou a sua atenção para a caixa. Hugo pigarreou suavemente. Oui, monsieur? A voz do vendedor era áspera, porém, quando olhou para cima e viu Hugo, deixou fugir um sorriso. Ah, é o senhor. Por onde tem andado, mon ami? Salut, Max. Hugo descalçou uma luva e apertou a mão estendida de Max, quente apesar do frio que se fazia sentir. Falaram em francês, ainda que o homem mais velho soubesse falar inglês bem o suficiente quando lhe interessava, como quando as bonitas jovens americanas paravam diante da sua banca de livros. Qual a razão do espalhafato?, indagou Hugo. Max não respondeu e voltaram-se para assistir à cena. A mulher agitava um braço como que a dizer ao homem entroncado que a deixasse em paz. A resposta do homem chocou Hugo: pôs-lhe a mão no pulso e torceu-o até a fazer rodopiar e, no mesmo movimento, deu-lhe um pontapé nas pernas e desequilibrou-a. A mulher caiu de joelhos e soltou um gemido ao mesmo tempo que atirava a cabeça para trás em sofrimento. Hugo deu um passo em frente, mas sentiu uma mão forte a puxá-lo para trás.
Non, disse Max. Não se meta. Une affaire domestique. Hugo afastou-o. Ela precisa de ajuda. Fique aqui. Non, insistiu Max, agarrando o braço de Hugo com uma força que o americano sentiu mesmo sob o casaco de inverno. Deixe-a, Hugo. Ela não precisa da sua ajuda, acredite no que lhe digo. Porque não? Quem diabo é ele? Hugo sentiu a tensão crescer no seu corpo e lutou contra o desejo de a libertar do fanfarrão do outro lado da rua. Qualquer coisa no apelo de Max levara-o a pensar duas vezes. Envolver-se podia piorar as coisas. O que se passa, Max?, repetiu. O francês fitou-o durante algum tempo, depois soltou o braço de Hugo e desviou o olhar. O homem mais velho virou-se para a sua banca, pegou num livro e pôs os óculos para conseguir ler a capa. Hugo virou-se para o encarar e reparou que lhe faltava a lente esquerda. Bolas, Max. Diga-me que aquele tipo não lhe fez uma visita. A mim? Não. Max limpou o nariz abatatado e bexigoso com a manga do casaco, mas não olhou Hugo nos olhos. Porque haveria de o fazer?
Diga-me o Max. O cais era um íman para gente doida, Hugo sabia-o, atraída como mosquitos pela água e pelos turistas que circulavam pelo coração da cidade. Por nenhuma razão. Se está preocupado com os meus óculos, fique a saber que os deixei cair, apenas isso. Max olhou, por fim, para Hugo e o sorriso regressou. Sim, estou a ficar velho e desastrado, mas ainda consigo tomar conta de mim. De qualquer maneira, o seu trabalho é garantir a segurança do seu embaixador, proteger a embaixada, e não preocupar-se com velhos como eu. Estou de folga, posso preocupar-me com quem quiser. Max voltou a agarrar o braço de Hugo, desta vez de forma tranquilizadora. Estou bem. Está tudo bem. D'accord. Se o diz. Hugo olhou para o outro lado da rua e viu a mulher já de pé, os braços do homem a agitarem-se em volta dela, mas sem lhe tocar. Relutantemente, Hugo decidiu ignorar o assunto. Virou-se para os livros em exposição. É assim que toma conta de si, explorando turistas, oui? Tem algo que valha a pena comprar? Preciso de um presente». In Mark Pryor, O Livreiro, 2012, tradução de Dina Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-062-1.

Cortesia ClubedoAutor/JDACT